Imigrantes venezuelanos temem ser despejados pela "Operação Acolhida"
Resumo da notícia
- A maior ocupação espontânea em Boa Vista, capital de Roraima, foi iniciada no ano passado e tem 850 imigrantes, incluindo 132 famílias de indígenas
- "Operação Acolhida", a força-tarefa de ajuda humanitária coordenada pelo Exército, disse aos moradores que eles devem deixar o local até 28 de outubro
- Ministério da Defesa afirma à coluna que saída será negociada e que os moradores têm opções, como ir para abrigos ou serem "interiorizados" no país
A "Operação Acolhida", coordenada desde 2018 pelas Forças Armadas em Boa Vista (RR), pretende encerrar até 28 de outubro a maior ocupação espontânea feita por imigrantes venezuelanos, incluindo indígenas, em um imóvel público abandonado de Boa Vista (RR). São cerca de 850 adultos e crianças que vivem desde o ano passado no terreno de um clube social que estava sem uso há anos e passou a ser ocupado pelos imigrantes no começo de 2019.
Segundo o Ministério da Defesa, o fim da ocupação faz parte de um plano emergencial "construído em conjunto" com "o Ministério Público Estadual e Federal, Defensoria Pública Estadual e da União, Advocacia Geral da União, Prefeitura, Governo do Estado, instituições civis e agências". Outras oito ocupações já foram desfeitas desde março, mas a do clube, batizada de "Ka'Ubanoko", ou "nosso lugar de dormir" na língua warao, é a maior.
No último dia 17, de acordo com os moradores da ocupação, representantes do Exército, entre outros órgãos, se reuniram com os moradores da ocupação para dizer que as famílias devem deixar o local até 28 de outubro. Os militares têm apresentado três opções: a chamada "interiorização", ou seja, levar os imigrantes de Boa Vista para outros lugares do Estado e do país, um auxílio para pagamento de aluguel e a transferência para alguns dos onze abrigos que estão em funcionamento na capital de Roraima.
Contudo, segundo líderes dos venezuelanos, os abrigos enfrentam problemas de infraestrutura, podem facilitar a transmissão do novo coronavírus e são uma solução temporária. Além disso, muitos dos venezuelanos já criaram vínculos com famílias da capital de Roraima, já estão trabalhando e preferem ficar em Boa Vista. A Defesa diz que os abrigos estão com apenas 68% da sua capacidade ocupada e não oferecem risco sanitário.
"As famílias querem ver se pelo menos o Estado poderia ceder alguma terra onde podemos fazer nossas casas, ou que nos deem mais tempo para nos planejar melhor. Eles poderiam ceder espaço, a gente podia pagar parceladamente. Ou mesmo ficar temporariamente aqui, até ver se a situação melhora na Venezuela", disse a venezuelana Yidri Torrealba, mãe de duas crianças, uma de dois anos de idade e outra de 12.
Segundo Yidri, cerca de 30% dos moradores da ocupação "Ka'Ubanoko" indicam que poderão aceitar alguma das opções apontadas pelo Exército, mas o restante quer outra solução.
"Os abrigos são temporários. Vamos demorar só uns três meses e dali seremos 'interiorizados'. Não sabemos como vai ser depois do dia 28 de outubro. Muitos estão aceitando a 'interiorização' porque estão com medo de despejo, de vir a polícia aqui nos retirar à força. Isso que está deixando as pessoas com medo.", disse a imigrante. Yidri afirmou ter sido escolhida como liderança das famílias "criollas" da ocupação, ou seja, não indígenas. Segundo ela, na ocupação há 506 não indígenas e cerca de 132 famílias indígenas das etnias warao, pemon, eñepá e cariña.
Yidri trabalhava como analista de recursos humanos na cidade de El Tigre, na Venezuela, mas a crise econômica e social do país obrigou-a procurar refúgio no Brasil. Ela chegou a Boa Vista em 12 de janeiro de 2018. Em março de 2019, ela se mudou com a família para a ocupação Ka'Ubanoko.
"As famílias não querem 'interiorização' por muitos motivos. Não viemos aqui para o Brasil para roubar nada, sabemos que aqui [a ocupação] é um lugar privado. Mas então que nos levem para um lugar melhor. Queremos ser autônomos, ter relação com a sociedade brasileira. Queremos uma solução que não gere mais problemas a longo prazo. Não queremos mais pessoas nas ruas, mais ocupações", disse Yidri.
Indígenas pedem uma consulta 'verdadeira, não arbitrária'
Leany Torre, uma das lideranças indígenas warao da ocupação, enviou um áudio às famílias e apoiadores para dizer que "neste momento estamos vivendo uma ameaça de despejo", inclusive "por parte do Exército, diretamente pela Operação Acolhida".
"Como povos indígenas, temos direito a uma consulta, livre, prévia e informada. Já há dois meses havíamos recebido algumas notícias de ameaças de despejo. Pedimos reuniões a várias instituições, quando perguntávamos para que eles nos informassem se essa ameaça de despejo ia se concretizar ou não. Essas instituições, que sabemos que estavam se reunindo, nos negavam tudo, dizendo que não tinham informação a respeito", disse Leany.
Segundo a indígena, as autoridades por fim disseram, na reunião do dia 17, que precisam do espaço desocupado até 28 de outubro. Leany disse que a consulta aos indígenas "tem que ser verdadeira, não uma consulta arbitrária".
"Aqui somos povos indígenas conscientes da nossa realidade. Eles pensam que podem decidir por nós porque somos indígenas migrantes. Mas nós sabemos, conhecemos nossa história, somos indígenas, não somos migrantes, somos indígenas da América toda. [...] Isso é algo que eles têm que aprender a respeitar. E quando eles dizem, fazem reuniões nas nossas costas, decidem por nós, automaticamente estão violando nossos direitos. O direito que temos de construir nosso futuro, de sermos protagonistas. Realmente nos sentimos indignados, por isso esse chamado a todas as instituições."
General diz que vai dormir na ocupação
Em entrevista nesta sexta-feira (25) à rádio "Folha BV", em Boa Vista, o general de divisão do Exército Antonio Manoel de Barros, comandante da "Operação Acolhida", disse que pretende passar algumas noites na ocupação para interagir com as famílias e chegar a uma saída pacífica para a ocupação. Ele afirmou que está "pessoalmente empenhado" no assunto.
"Já fui três vezes [à ocupação]. Vou começar uma vez por semana a dormir lá. É interessante como algumas pessoas colocam que é uma atitude arbitrária, truculenta. Não é nada disso. A Acolhida nunca fez isso. Eu estou indo lá para conversar com as pessoas, vamos construir um diálogo. Ninguém fica num abrigo porque quer, não é o melhor dos mundos. Nós podemos melhorar a gestão dos abrigos. Mas ali [na ocupação] é esgoto a céu aberto", disse o general à rádio.
Yidri disse que se o general quiser mesmo dormir na ocupação será "bem-vindo". "Não há problema e até nos sentimos um pouco mais seguros [com a presença do general]. Nós já pedimos mais apoio nessa parte de segurança", disse a venezuelana.
Na entrevista à rádio, o general mencionou que existem nuances entre as famílias da ocupação e que há "pessoas com carro lá dentro". Yidri esclareceu à coluna que são apenas duas ou três pessoas que usam carros e motos de brasileiros com os quais trabalham e, assim, são autorizados a ir para casa com os veículos - os carros não pertencem aos venezuelanos, disse Yidri.
O general disse ainda que muitos dos moradores "estão querendo 'interiorizar', isso é muito bom". "Eu falo para eles que a Acolhida não está interessada na reintegração [de posse do imóvel], porque isso é do Estado. A gente está preocupada em ser uma ponta de solução para eles. Eu falei que enquanto a fronteira está fechada, a gente tem tempo e energia para, com calma, buscar uma solução. Quando a fronteira abrir, outros problemas aparecem. Então estou preocupado com o tempo é por vocês [eles]. Mas tudo é conversado, mas sob o manto da legalidade."
O general foi indagado, na rádio, se os moradores estão resistindo em deixar a ocupação. "Eu não gosto dessa palavra de resistir porque dá a impressão de fricção e não é. Eu acho que na verdade é muita desinformação; 'Ah, eu não gosto dos abrigos' 'Ah, me falam isso' 'Ah. Nos abrigos não tenho a mesma liberdade que tenho aqui.' Acho que esses questionamentos, que eu acho que são perfeitamente válidos, mas tem que ser conduzidos num diálogo."
'Não se trata de despejo', diz Ministério da Defesa
Em nota à coluna, o Ministério da Defesa afirmou que a "Operação Acolhida" é "reconhecida internacionalmente pela resposta humanitária dos brasileiros ao êxodo de venezuelanos e pelo tratamento digno aos cidadãos que imigram ou se refugiam no Brasil. Os abrigos ofertados contam com segurança, saneamento básico, alimentação e apoio de saúde".
Segundo a Defesa, neste ano, dentro da parceria com os outros órgãos públicos, "ações foram planejadas para promover a realocação de venezuelanos em áreas inadequadas e/ou irregulares".
"A Operação Acolhida informa que não se trata de despejo. As realocações são realizadas conforme o Plano Emergencial para as Ocupações Espontâneas."
Segundo a Defesa, até agora "já foram desativadas oito ocupações em Boa Vista. Em todas elas, o instrumento utilizado foi o diálogo. Nestes locais viviam mais de 1.400 pessoas, que foram realocadas em abrigos, passaram a receber auxílio aluguel ou foram interiorizadas. Ainda resta uma ocupação. O espaço, conhecido como Ka' Ubanoko, tem previsão para ser desativado em outubro. A transferência será pautada pelo convencimento, com flexibilidade inclusive de data e atenderá todos os critérios humanitários legais. Para isso, a Operação Acolhida tem feito constantes reuniões na ocupação de Ka' Ubanoko."
A Defesa confirmou que "as famílias realocadas terão opção de irem para abrigos, receber o auxílio aluguel ou serem interiorizadas".
"Os abrigos, hoje funcionando com 68% da capacidade, não representam risco sanitário e oferecem melhores condições de moradia, mais segurança e dignidade, pois nestes locais todos recebem alimentação, atendimento de saúde e têm acesso a saneamento básico. No caso dos indígenas, o local proposto conta com redários e área para manutenção das tradições. O interesse da Acolhida é garantir dignidade e segurança no trato com os venezuelanos indígenas e não indígenas."
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