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Rubens Valente

REPORTAGEM

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Justiça veta acesso ao seguro-desemprego para libertado de trabalho escravo

Sítio na zona rural de Cáceres (MT) onde o trabalhador Sebastião de Almeida Barbosa foi resgatado pela Auditoria Fiscal do Trabalho de situação análoga à de escravo - Reprodução
Sítio na zona rural de Cáceres (MT) onde o trabalhador Sebastião de Almeida Barbosa foi resgatado pela Auditoria Fiscal do Trabalho de situação análoga à de escravo Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

20/12/2021 15h05

Na manhã do último 29 de agosto, o trabalhador rural Sebastião de Almeida Barbosa, 46, triturava cana-de-açúcar para servir de comida ao gado do seu empregador quando a máquina arrastou sua mão esquerda, decepando três dedos. Barbosa conseguiu pedir ajuda a um vizinho e foi levado ao hospital de Cáceres (MT). O caso chegou ao conhecimento de um órgão de direitos humanos e à Auditoria Fiscal do Trabalho, que enviou uma equipe de fiscalização e autuou os donos do sítio por submeter Barbosa à situação análoga a escravidão, entre outras irregularidades. De lá para cá, Barbosa enfrenta outras máquinas depois do triturador: a burocracia da Receita Federal e o Judiciário.

Desde que deixou o sítio, em setembro, Barbosa está desempregado. Primeiro foi acolhido por uma casa de passagem do serviço social de Cáceres. Depois, por um albergue em Cuiabá. Atualmente estaria em situação de rua. No sítio ele recebia R$ 30 diários, menos de um salário mínimo ao mês.

Em nome do trabalhador, que é analfabeto e não sabe assinar o nome, no início de dezembro a DPU (Defensoria Pública da União) ajuizou uma ação ordinária na Justiça Federal para que a União seja obrigada a liberar, em caráter de urgência, o valor correspondente a três meses de seguro-desemprego, num total de R$ 3,3 mil. Pela lei (nº 7.998/90), as pessoas resgatadas em situação análoga à escravidão têm direito ao valor. Com os recursos, diz a DPU, Barbosa poderá arrumar uma acomodação e adquirir alimentos até conseguir um novo emprego.

No último dia 10, contudo, a juíza substituta da 9ª Vara Federal Especial Cível de Cáceres (MT) Carina Michelon indeferiu a tutela antecipada para a liberação imediata do seguro-desemprego. Ela mencionou que a Receita Federal informou que o CPF do trabalhador está em "situação irregular". A DPU já havia pedido por ofício que a Receita regularizasse o CPF, mas não houve resposta.

"No presente caso, em que pese a lamentável situação fatídica do autor, entendo que há necessidade de verificação das pendências burocráticas para a concessão do benefício, bem como a prévia oitiva da União para a liberação do seguro-desemprego pleiteado. Consigno que até mesmo para a concessão de auxílio emergencial foi necessária a resolução de pendências relacionadas ao CPF", escreveu a juíza em sua decisão.

A magistrada afirmou ainda que a concessão da tutela de urgência "não será concedida se houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão", em referencia à liberação dos R$ 3,3 mil.

O defensor regional de direitos humanos da DPU em Mato Grosso, Renan Vinicius Sotto Mayor, havia advertido, na ação ajuizada na Justiça Federal, que "uma pendência burocrática estaria impedindo o autor de gozar de um benefício fundamental relacionado ao mínimo existencial". O primeiro pedido administrativo para a liberação do seguro-desemprego data de 22 de outubro - há, portanto, quase dois meses.

"O perigo da demora nesse caso é evidente, pois o autor [Barbosa] já foi submetido a grave violação de direitos humanos (trabalho escravo, acidente de trabalho) e agora sequer consegue gozar seu direito fundamental a percepção de seguro-desemprego previsto expressamente na Lei nº 7.998/90. Frise-se, o autor encontra-se acolhido em abrigo para pessoas em situação de rua e não possui qualquer renda para sua sobrevivência, por isso, será fundamental a concessão imediata do seguro-desemprego", escreveu Sotto Mayor.

No último dia 15, a DPU recorreu ao TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região - não havia decisão conhecida até o fechamento deste texto. A defensora Hellena Pintor Bezerra Leite ponderou no recurso que "o requisito ensejador da urgência, na hipótese, é o próprio caráter alimentar da verba pleiteada. O benefício requerido pelo Recorrente [Barbosa] tem, nitidamente, natureza alimentar, já que se destina principalmente ao seu sustento, fato que, por si, impõe o deferimento da antecipação da tutela requerida".

Trabalhador dormiu num banco de rua após acidente

Sebastião de Almeida Barbosa nasceu em Passagem Franca, no Maranhão, e se mudou para Cáceres em 2010. Seis anos depois, foi contratado para trabalhar no sítio de um assentamento na zona rural do município. Fazia serviços gerais, como roça para pastagem, consertar cercas, cuidar do gado e dos porcos, preparar a ação dos animais. Também trabalhava para o mesmo patrão numa casa na cidade.

Barbosa não teve a carteira de trabalho assinado e nunca tirou férias desde 2016. Não recebia o 13º salário. Disse aos fiscais do trabalho que não recebeu equipamentos de proteção individual, com exceção de uma botina usada, uma vez. Também nunca passou por exames médicos "nem recebeu treinamento para lidar com máquinas e manuseio de agrotóxicos", conforme conclusão do relatório do órgão trabalhista.

O trabalhador dormia num dos quarto do sítio com apenas uma cama e um colchão, sem armário e ventilador. Ele disse aos fiscais do trabalho que depois que ele entrava no quarto, à noite, "os empregadores travavam a porta pelo lado de fora". Se precisasse sair, tinha que pular pela janela.

De acordo com o trabalhador, quando os patrões souberam que ele era soropositivo "passaram a tratá-lo de forma diferente". No transporte do sítio até a cidade, "era obrigado a vir na carroceria do veículo". Quando ia na cabine, "tinha que forrar o banco com uma lona".

Barbosa disse que não podia usar o banheiro da casa e que "fazia as necessidades fisiológicas 'no mato' ou urinava em uma garrafa pet, especialmente no período noturno". Disse que se banhava fora de casa, usando um tambor com água e uma vasilha.

Resgatado de trabalho análogo à escravidão, o trabalhador rural Sebastião de Almeida Barbosa e o triturador de cana que decepou três dedos de sua mão esquerda - Reprodução - Reprodução
Trecho de relatório da Auditoria Fiscal do Trabalho que mostra o resgatado de trabalho análogo à escravidão, o trabalhador rural Sebastião de Almeida Barbosa, e o triturador de cana que decepou três dedos de sua mão esquerda
Imagem: Reprodução

Barbosa contou aos fiscais que no sítio "não havia qualquer material de primeiros socorros", embora a propriedade se localize a cerca de 50 km de um centro urbano. Após o acidente com o triturador, no hospital regional de Cáceres passou por uma cirurgia na mão para conter o sangramento. Um dos empregadores esteve no hospital e prometeu "voltar mais tarde", o que não aconteceu. O filho dos empregadores deixou com Barbosa, no hospital, sua mochila e R$ 100.

Cinco dias após perder três dedos da mão, voltou ao trabalho

Após ter alta do hospital, Barbosa procurou seus patrões na casa na cidade mas não os encontrou, pois a residência estava fechada. Sem ter onde ficar, dormiu na rua, "em um banco que fica em frente ao hospital". No dia seguinte, pegou um mototáxi e voltou para o sítio, onde reencontrou o casal de patrões.

Em 2 de setembro, apenas cinco dias depois do acidente, Barbosa foi deixado sozinho na propriedade. "Mesmo estando em recuperação dos ferimentos causados pelo acidente, com a mão inchada e ponteada [com pontos cirúrgicos], ficou responsável pelo cuidado com os animais da propriedade", disse Barbosa aos fiscais, segundo termo de depoimento. Seis dias depois, o patrão reclamou com ele sobre porcos terem danificado uma cadeira do sítio. Barbosa resolveu ir embora. Na saída, disse o trabalhador, um dos empregadores lhe disse que "ainda o iria enterrar".

Após pegar duas caronas, chegou a Cáceres. Novamente sem ter onde ficar, dormiu na rua. No dia seguinte, procurou o serviço de assistência social do município. Dali foi encaminhado ao CRDH (Centro de Referência em Direitos Humanos), um órgão do governo estadual, que acionou a fiscalização do trabalho para que apurasse a denúncia.

No dia 21 de setembro, na companhia de Barbosa, os fiscais do trabalho foram ao sítio. Lá encontraram um homem que confirmou que Barbosa trabalhava no sítio e indicou o local onde ficava o colchão do colega. Contou que roupas de Barbosa que ficaram na propriedade "foram jogadas fora" pelos patrões.

"Restou evidenciado que o local onde o trabalhador Sebastião ficava alojado, apesar de ser também a sede da propriedade, era bastante precário. O quarto dispunha apenas de cama e colchão, sem armários, com pouca ventilação", escreveram os auditores fiscais em relatório.

Os fiscais inspecionaram o triturador de cana. "Restou evidenciado que o equipamento não dispunha de proteções de segurança mínimas que poderiam ter evitado o acidente ou minimizado seus efeitos. Além da inexistência de proteções de segurança, o triturador era ligado a uma fonte de energia totalmente irregular, com partes energizadas expostas e com risco de outros acidentes com choques elétricos", apontou o relatório da fiscalização."

Empregador foi 'omisso nas suas obrigações', diz relatório

Os auditores fiscais notificaram três vezes o empregador a prestar esclarecimentos e regularizar a situação trabalhista de Barbosa. Mas, segundo o relatório, o empregador "foi omisso no cumprimento das suas obrigações" e "não apresentou os documentos nem justificou a inércia, razão pela qual foi lavrado auto de infração por embaraço à fiscalização". Os fiscais emitiram 14 autos de infração contra o empregador.

Em depoimento prestado à equipe de fiscalização, o empregador de Barbosa disse que assumiu o sítio em 2017. Confirmou que Barbosa trabalhava "em serviços gerais de ajudante nas propriedades" e que o pagamento era feito "ao final de cada empreitada". Disse que não reconhecia Barbosa "como empregado, mas como 'diarista'". Afirmou ainda que Barbosa "ficava 'beiradeando' a casa do depoente [sitiante], aguardando por comida".

O empregador argumentou que o quarto de Barbosa tinha ventilador, que ele podia usar o banheiro da casa e que tinha lhe dado equipamentos de proteção, como "óculos, botina, luva". Reconheceu que não foi dado treinamento a Barbosa, mas que "ele sabe fazer todas as coisas". Argumentou que no dia do acidente "foi a primeira semana que o sr. Sebastião ficou sozinho na propriedade". Reconheceu que, após saber que Barbosa era soropositivo, "no transporte no interior do veículo forravam o banco para o sr. Sebastião sentar". Disse ainda que havia primeiros socorros na propriedade e que entregou medicamentos a Barbosa depois do acidente.