Thais Bilenky

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Reportagem

Revisão da Lei da Anistia ganha força em meio a pressão para perdoar 8/1

A pressão do bolsonarismo para anistiar condenados pela invasão dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 e preservar militares envolvidos na tentativa de golpe em 2022 cresce em meio a uma movimentação para revisitar a Lei de Anistia e impulsionar a busca por reparação a vítimas da ditadura militar.

Na esteira do sucesso do filme "Ainda Estou Aqui", duas ações no STF (Supremo Tribunal Federal) devem retomar discussões sobre a condenação de agentes da repressão.

Nesta semana, o Supremo formou maioria para dar repercussão geral a uma revisão da Lei da Anistia. Os ministros debaterão se a lei é aplicável ao crime de ocultação de cadáver, classificado como um crime permanente. O resultado do julgamento deverá ser aplicado por todas as instâncias do Judiciário.

"O crime de ocultação de cadáver tem uma altíssima lesividade, justamente por privar as famílias desse ato tão essencial [o sepultamento]. No momento presente, o filme 'Ainda Estou Aqui' tem comovido milhões de brasileiros e estrangeiros. A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos", sustentou o ministro Flavio Dino, relator do caso.

O caso de Rubens Paiva deverá ser examinado pelo STF em outra ação, esta relatada por Alexandre de Moraes, que questiona a aplicação da Lei da Anistia aos cinco militares envolvidos em seu assassinato, dois dos quais estão vivos.

Eles são acusados de homicídio qualificado, fraude processual e quadrilha armada, além de ocultação de cadáver. A PGR (Procuradoria-Geral da República) encaminhou em janeiro entendimento de que cabe, sim, ao Supremo fazer a análise do caso.

Apoio a perdão a 8/1 ganha força

Nesse caldo, há, em contrapartida, uma articulação no Congresso para aprovar um projeto que perdoe condenados pelo 8 de Janeiro com argumentação encampada inclusive por José Múcio Monteiro, ministro da Defesa do governo Lula (PT).

"Se foi um golpe, quem organizou que pague. Agora, [tem] aqueles que foram tomar os seus ônibus, que estavam lá tirando foto de celular, tem os que entraram quebrando, tem os que ficaram do lado de fora", disse Múcio no programa Roda Viva, da TV Cultura.

"Você não pode condenar uma pessoa e dar a mesma pena a quem armou, a quem financiou e a uma pessoa que foi lá encher o movimento."

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Declarações no mesmo sentido foram dadas pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), num momento de expectativa com a chegada de eventual denúncia da PGR sobre as 37 pessoas indiciadas por tentarem dar um golpe de Estado, entre elas, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o general Braga Netto, seu ex-ministro e candidato a vice em 2022.

'Momento promissor para o tema'

Ao mesmo tempo, a agenda de familiares de vítimas da ditadura tomou impulso, com a retificação da certidão de óbito dos desaparecidos políticos.

"Estamos num momento muito promissor para esse tema", disse a procuradora Eugênia Gonzaga, presidente da CEMDP (Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos).

A comissão foi criada em 1995, no governo FHC, para reconhecer como mortos os desaparecidos na ditadura, e para trabalhar para localizar e identificar seus corpos.

Com a catalogação de 434 pessoas mortas pela ditadura feita pela Comissão Nacional da Verdade, em 2014, coube à CEMDP dar continuidade aos trabalhos de buscas dos corpos como o de Rubens Paiva, que jamais foi localizado.

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De 2014 a 2018, dois corpos foram identificados —de Dimas Casemiro e Aloísio Palhano Ferreira. "Parece pouco, mas foram as únicas identificações da América Latina inteira em 15 anos", comemorou Eugênia Gonzaga.

O processo de identificação é complexo. Segundo Gonzaga, na vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte de São Paulo, onde diversos perseguidos foram enterrados, pode haver ossadas misturadas de até mil pessoas, inclusive de crianças mortas por meningite, e indigentes.

Para chegar à identificação de Palhano, em 2018, a CEMDP decidiu colher material genético de familiares mesmo sem garantia de que localizaria seus restos mortais. Palhano passou por centros de tortura no Rio e em São Paulo, inclusive pelas mãos de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o torturador exaltado por Jair Bolsonaro. "Não se tinha notícia nenhuma dele, era um completo desaparecido", notou Eugênia Gonzaga.

O material coletado em Perus foi mandado para um dos poucos laboratórios especializados em ossadas antigas do mundo, o International Commission on Missing Persons, em Haia, na Holanda. "E bateu com o DNA da filha dele. Foi um acerto muito grande", comemorou a presidente da CEMDP.

Escolhas políticas

O ano de 2018 foi animador, e a ideia era aplicar a mesma estratégia para outros desaparecidos. Mas Bolsonaro se elegeu presidente e, ao tomar posse, suspendeu as atividades da Comissão de Mortos e Desaparecidos.

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Quando Lula assumiu em 2023, ativistas da área articularam a reinstalação da comissão, mas a pauta continuou adormecida na gaveta presidencial após o 8 de Janeiro.

"São escolhas políticas que às vezes é até difícil de compreender, mas que fazem parte do contexto que a gente vive de turbulência em determinados temas que, querendo ou não, envolvem as Forças Armadas", afirmou a deputada Natália Bonavides (PT-RN), representante do Congresso na CEMDP e aliada de Lula.

A comissão só foi instalada em meados de 2024, mas está com impulso. Com a articulação de Bonavides, captou cerca de R$ 3,5 milhões em emendas parlamentares para 2025 —em 2018, foi R$ 1,6 milhão, e em 2019, zero.

Agora peritos estão trabalhando nas ossadas já recolhidas e diligências inéditas ocorrem nesta semana em cemitério de Recife.

"Antes tínhamos dificuldade de explicar para a sociedade e parlamentares. Hoje encontramos muito mais abertura, uma sensibilização muito maior", afirmou Gonzaga.

Para Natália Bonavides, as revelações da PF sobre a articulação de um golpe de Estado e a invasão das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 mereciam maior atenção pública.

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"Tiveram as divulgações, mas as reflexões sobre o seu significado não foram trazidas. A gravidade e o quão perto a gente esteve de um retrocesso não foi trabalhado de forma mais contundente", disse a deputada. "Acho que poderia ter tido um chamamento maior da sociedade para refletir sobre o que aconteceu."

Até agora a oposição se mobilizou mais para passar a anistia aos condenados à tentativa de golpe de 2023 do que os governistas, para traçar paralelos com 1964.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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