Tiago Mali

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Reportagem

Juíza que puniu divulgação de supersalários recebeu 30 meses acima do teto

A juíza Karen Bertoncello, que condenou anteontem (21) a jornalista Rosane de Oliveira e o jornal Zero Hora por danos morais por divulgarem a remuneração da ex-presidente do TJ-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul) Iris Helena Medeiros Nogueira, também recebeu nos últimos anos remuneração líquida acima do teto constitucional.

De acordo com dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), foram 30 meses em que ocorreram pagamentos acima do teto remuneratório do funcionalismo público desde setembro de 2017. O teto - que é o subsídio bruto pago aos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), atualmente é de R$ 46 mil.

Os maiores pagamentos a Karen Bertoncello, que ocupa a 13ª vara cível de Porto Alegre, ocorreram em fevereiro de 2023 (R$ 246 mil) e abril de 2024 (R$ 170 mil). Nesses meses foram recebidos:

  • licença prêmio indenizada: os juízes e servidores do TJ-RS ganhavam 3 meses de folga a cada 5 anos, que podem ser convertidos em dinheiro. O benefício foi extinto em 2021, mas sobraram créditos de períodos anteriores;
  • pagamentos retroativos não especificados;
  • gratificação por exercício cumulativo: quando o magistrado acumula funções ou trabalho e recebe um adicional por isso.

Os pagamentos ocorrem de forma legal porque o teto só é aplicado em relação ao subsídio e vencimentos classificados como "remuneratórios".

Quando há recebimentos que os tribunais classificam como "indenizatórios", eles podem ser acumulados com o salário em valores superiores ao teto do funcionalismo público. Também não há pagamento de imposto sobre os valores indenizatórios.

No total, de setembro de 2017 a dezembro de 2024, os pagamentos mensais para a juíza que excederam o teto somaram R$ 1,1 milhão. O sistema do CNJ não tem dados de remuneração da magistrada referentes a 2025.

O UOL questionou o TJ-RS e a juíza Karen Bertoncello sobre o assunto. A magistrada disse que não iria se manifestar a respeito do tema. O tribunal afirmou em nota que "os valores que eventualmente excedam ao teto remuneratório dos magistrados no Rio Grande do Sul são decorrentes de verbas indenizatórias, devidamente autorizadas pelo CNJ, nos termos do provimento nº 64/2017 e da Recomendação n° 31/2019, do CNJ".

Entenda o caso

Em julho de 2023, o jornal Zero Hora publicou notícias relacionadas ao salário de magistrados do Rio Grande do Sul. Na reportagem "Quem são os magistrados que mais ganharam em abril no RS", um ranking mostrava a então presidente do TJ-RS, Iris Medeiros Nogueira, no topo da lista, com um contracheque de R$ 662 mil.

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A desembargadora acionou a Justiça dizendo ter havido danos morais. Afirmou que a publicação das reportagens causou "significativo abalo à imagem e à honra" e que teve intensa repercussão negativa.

Na decisão sobre o caso, a juíza Karen Bertoncello escreveu que "ainda que as informações divulgadas sejam públicas e verídicas, a forma como foram tratadas, o contexto de exposição e a intencional omissão de dados relevantes podem configurar abuso de direito e gerar responsabilidade civil, especialmente quando há violação à dignidade da pessoa humana ou indução à desinformação".

A decisão afirmou que o título da reportagem com o ranking não mencionou a natureza esporádica do pagamento. Consta da reportagem, no entanto, nota do TJ-RS com sua manifestação sobre o pagamento da licença-prêmio.

Bertoncello condenou o jornal e a colunista a pagar uma indenização de R$ 600 mil. O veículo disse que recorrerá da decisão.

A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) publicou uma nota dizendo ver com preocupação a condenação da jornalista da Zero Hora. O texto diz que "a decisão da juíza Bertoncello põe em risco a liberdade de imprensa e o valor arbitrado, de R$ 600 mil, tem um efeito intimidatório sobre toda a imprensa e todos os jornalistas".

Desde 2025 o CNJ, órgão que administra e fiscaliza o Poder Judiciário, obriga os tribunais a divulgarem a remuneração completa dos magistrados - incluindo salário e pagamentos adicionais.

Nota sobre licença-prêmio

Leia abaixo a íntegra da nota do TJ-RS sobre o pagamento de licença prêmio em 2023, que foi reproduzida pelo jornal Zero Hora:

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"O TJ-RS obedece rigorosamente ao teto constitucional no pagamento do subsídio de seus magistrados e todo e qualquer pagamento adicional é submetido à apreciação do CNJ.

Os valores apontados são decorrentes do somatório do subsídio mensal e valores decorrentes de indenização de licenças-prêmio.

O TJ-RS estabeleceu como meta a priorização da tramitação e julgamento dos processos, antiga reivindicação da sociedade. Devido ao volume de trabalho, diante da enorme judicialização, nem sempre foi possível aos magistrados e servidores usufruírem de seus direitos relacionados a descanso (licença especial e férias).

A Licença-Prêmio está prevista no artigo 150 da Lei Complementar nº 10.098/94 e se constituía de direito previsto em lei para servidores e magistrados, correspondendo a três meses de repouso a cada quinquênio de efetivo exercício, direito este extinto em 2021.

Neste contexto, o TJ-RS efetivou planejamento para indenizar aqueles servidores e magistrados que desejassem antecipar o recebimento desses valores - pois, se não gozado ou recebido, quando de sua aposentadoria teriam direito ao seu percebimento em valores de qualquer forma. Assim, possibilitou a conversão em pecúnia de tais direitos, expediente comum em várias instituições públicas.

Tal prática, aliás, é muito usual em empresas privadas, que compram períodos de férias de seus funcionários.

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A decisão de indenizar tais valores foi devidamente submetida ao crivo do CNJ, que depois de largo tempo de exame, em 25/11/2022, concluiu pela sua legalidade, lançando a devida autorização, para a antecipação das indenizações (Pedido de Providência nº 0008414-16.2020.2.00.0000 - CNJ).

Os pagamentos são de natureza indenizatória, não têm qualquer relação com a remuneração mensal (subsídios), tendo sido pagos em datas e folhas de pagamento distintas. Por isso, não estão submetidos ao teto constitucional.

Realça-se que os pagamentos foram pontuais, únicos e extraordinários, além de devidamente adequados ao orçamento do Poder Judiciário.

Esclarece-se que não foram apenas os magistrados constantes da lista que receberam em pecúnia o valor correspondente à licença especial, mas sim um total de 640 magistrados e 4.380 servidores do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul, realizando pagamento prioritário aos servidores no mês de janeiro.

Nos meses de fevereiro, março e abril foram pagos aos magistrados que optaram pelo parcelamento, os demais receberam em parcela única no mês de abril, o que gerou os valores expressivos indenizados, decorrentes da não fruição desse direito acumulado ao longo da carreira".

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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