Internação de dependentes: Tarcísio flerta com crime contra humanidade
O famoso e saudoso escritor italiano Primo Levi, que sobreviveu aos campos de Auschwitz e Birkenau, deixou no seu imenso legado, uma frase fundamental: "tutti coloro che dimenticano il loro passato sono condannate a reviverlo" (todos aqueles que esquecem o passado estão condenados a revivê-lo).
O governador paulista Tarcísio de Freitas, mal aconselhado, pensou em solucionar um antigo problema de saúde pública, em local apelidado de Cracolândia, na zona central de São Paulo, com a concentração dos dependentes químicos no antigo bairro paulistano do Bom Retiro.
Confinar seres humanos é crime contra a humanidade. E agrava-se, no caso Cracolândia, com o fato de representarem os que seriam deslocados e confinados, — pela dependência química e o abandono físico e moral —, os últimos da escala social.
A história
O bairro do Bom Retiro foi escolhido por Adhemar de Barros, - então interventor federal (25 de abril de 1938 a 5 de junho de 1941) por nomeação do ditador Getúlio Vargas -, para o confinamento das prostitutas.
A elite paulistana, os moralistas de fachada e plantão e a Igreja, pressionaram o interventor Adhemar, - aquele que governou São Paulo por três vezes e ficou famoso pela frase, construída pela sabedoria popular, como "aquele que rouba, mas faz".
As prostitutas, com circulação livre e trottoir pelo centro paulistano, em especial na avenida São João e rua Líbero Badaró, incomodavam as esposas dos barões do café, as carolas das igrejas, enfim à elite dos endinheirados.
Também incomodavam os cabarés, bares com cafetões e as polacas estabelecidas depois de fugir da pobreza européia do Leste e da perseguição aos judeus, já sentida.
Adhemar, médico de formação e político de profissão, removeu, em camburões, as prostitutas do centro e distante do aristocrático bairro de Campos Elíseos. Lá ficava o palácio que servia de sede ao governo paulista.
As prostitutas foram amontoadas no Bairro do Bom Retiro, numa área de confinamento entre as ruas Aimorés e Itaboca.
Por consequência, os bordeis, bares e cabarés, transferiram-se para o Bom Retiro, à época um bairro dos judeus (hebreus) e carcamanos (apelido dado aos pobres imigrantes italianos: "calcavam a mão na balança para roubar no peso". Isso virou carcamano).
O confinamento foi estudado. O entroncamento ferroviário (Sorocabana e Santos Jundiaí) impedia as prostitutas de circularem pelos Campos Elíseos.
O Bom Retiro, dos imigrantes pobres e trabalhadores, era encostado ao bairro operário da Barra Funda, também um bairro de italianos, como descrito no célebre livro intitulado de Brás, Bexiga e Barra Funda, do escritor Antônio de Alcântara Machado.
O objetivo era aproximar prostitutas a operários, vistos como clientes. O confinamento, um gueto. Ou melhor, àquilo que a elite paulistana considerava a lumpesinato, a englobar judeus e carcamanos. Enfim, separar da nata social e confinar as prostitutas.
Lógico, com policiamento nas fronteiras (o entrocamento ferroviário era obstativo) e a formação topográfica de uma ferradura facilitava a vigilância policial.
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Quero receberAs casas com luzes vermelhas, para ninguém se enganar e ingressar em chamada "casa de família", recebiam autoridades incumbidas de controlar moléstias e proliferações de germes e epidemias a colocar em risco a elite paulistana.
Atenção: o confinamento das prostitutas no bairro do Bom Retiro durou 13 anos. Era por decreto. E decreto abolido pelo governador Lucas Nogueira Garcez.
Em boa hora, o governador Tarcísio mudou de ideia. Mas, continua a pensar, e volta a flertar com o Tribunal Penal Internacional, ao pensar na volta da internação compulsória de dependentes químicos, algo desumano, ineficaz e inconstitucional.
O confinamento representa política conservadora, dos que apostam sempre na repressão. Idem, a internação compulsória: este comentarista do UOL já escreveu vários textos, sempre a lembrar que a implantação em São Paulo foi por ilegal autorização de Geraldo Alckmin, um católico que se mostrou, pela insensibilidade com os usuários, um santarrão.
A única solução para a Cracolândia, e o mundo civilizado a implantou com sucesso, passa pela política chamada de Salas Seguros de Uso, também conhecida por Narcossalas.
Atenção. Sobre elas escrevi no jornal Folha de S. Paulo, em 20 de novembro de 2004. Acompanhei as implantações na Suíça (política de salas seguras de uso) e na Alemanha.
Esse mencionado artigo da Folha de S. Paulo continua atual, pois conta com resumida historiografia e destaca os bons resultados colhidos por meio dessa experiência humanizadora. Vou repetir: humanizadora.
O atual governador, Tarcísio de Freitas, é um homem de direita, conservador. Mas, muitas vezes e no interesse público, até um conservador, e desde que humanista, pode considerar linhas políticas progressistas para contrastar o fenômeno das drogas. Este, com relação aos usuários e dependentes, um problema de saúde pública e não criminal.
E o atual governador, que já recuou com as câmeras nas fardas de policiais militares e, agora, com o confinamento dos dependentes no bairro do Bom Retiro, não tem a cabeça desmobiliada de Jair Bolsonaro, responsável pela sua eleição. Sabe pensar e racionar. Não é obscurantista como seu criador.
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