'Ainda Estou Aqui' motiva o STF a apagar parte de uma vergonha
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O escritor, dramaturgo e poeta espanhol Federico García Lorca foi fuzilado aos 38 anos de idade. De costas, por ser homossexual e em observância do humilhante protocolo fascista internacional.
Os policiais que o prenderam, aprisionaram e mataram, a serviço do regime direitista-nacionalista franquista, sumiram com o corpo, na velha e ultrapassada crença jurídico-processual de não existir crime de homicídio sem cadáver.
Até hoje, o corpo de García Lorca, considerado o maior dramaturgo e poeta espanhol do século 20, está desaparecido.
A cada descoberta de fossa coletiva de vítimas republicanas da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e da ditadura do generalíssimo Franco, surge para os espanhóis a esperança de resgate dos espólios do escritor e do resistente político García Lorca.
Ninguém de bom senso ou que guarde na memória o terrorismo de Estado, com torturas e assassinatos, executados à época pela ditadura militar brasileira (1964-1985), tem dúvida da cruel morte, com ocultação do cadáver, de Rubens Beyrodt Paiva, engenheiro e deputado federal, dado como falecido em janeiro de 1971.
O filme "Ainda Estou Aqui", um drama histórico dirigido por Walter Salles, despertou até a consciência de ministros do STF que deverão redefinir, em caso de assassinato com cadáver oculto, o alcance da anistia de 2010.
O STF, com a mácula vergonhosa de um julgamento que premiou até torturadores de alto coturno como Carlos Brilhante Ustra, um dos ídolos do ex-presidente Jair Bolsonaro, terá oportunidade para, em parte, redimir-se.
O STF terá tudo para se fazer justiça, para não premiar a impunidade e para não deixar mau exemplo para geração futura, que se espera democrática, livre e republicana.
O supremo erro
O governo da ditadura militar, para salvar os seus golpistas, torturadores e carrascos, cunhou um projeto de lei de Anistia.
O dócil Congresso o aprovou e pariu a legislação sancionada pelo general-presidente João Baptista Figueiredo, aquele que demonstrou, como coiceiro, conviver melhor com muares e que declarou preferir sentir o odor dos equinos em vez do cheiro do povo.
À época da referida anistia, a propaganda do regime ditatorial batia na tecla da pacificação, do esquecimento pleno.
E nesse ritmo de "pra frente Brasil" acabou por embarcar o Supremo Tribunal Federal, por 7 votos contra 2, ausentes por motivo de saúde Joaquim Barbosa e, por impedimento, Dias Toffoli.
A lei da Anistia estabelecia esquecimento aos crimes políticos e conexos, consumados entre 2 de setembro de 1961 (quando iniciados os atos preparatórios golpistas) e 15 de agosto de 1979.
Para o STF da época, a Anistia, "tout court", era ampla, geral e irrestrita. E pouca gente diz, e o filme "Ainda Estou Aqui" serve para lembrar, a referida anistia foi incondicionada.
À luz do direito internacional, os crimes contra os direitos fundamentais da pessoa humana são imprescritíveis e não podem ser objeto de anistia.
E tem mais: os crimes conexos, do tipo ocultar cadáveres e desaparecer com eles, são ilícitos, como bem lembrou o ministro Flávio Dino —que já foi juiz de carreira aprovado em concurso público— permanentes e de efeitos permanentes.
Crimes permanentes, como ensinam os nossos criminalistas maiores, "são os que causam uma situação danosa ou perigosa que se prolonga no tempo". São exemplos deles, sempre consoante os maiores criminalistas nacionais, o sequestro de pessoas, o cárcere privado, a ocultação de cadáver.
Só para lembrar, descoberta de cativeiro com longo período, enseja prisão em flagrante porque o crime está em permanente consumação, protrai-se, alonga-se, no tempo.
Dessa forma, enquanto o cadáver de Rubens Paiva, que foi sequestrado pela ditadura e o seu cadáver está oculto, o momento consumativo do crime se prolonga. Em outras palavras, o crime de ocultação, o sumiço do cadáver de Rubens Paiva, ainda está se consumando.
Como é capaz de perceber até um bacharel reprovado em exame da OAB ou um rábula de porta de cadeia de delegacia de polícia de periferia, a Anistia aplica-se a crimes consumados e não àqueles em consumação, como o sequestro, o cárcere privado e a ocultação de cadáver.

O filme e o STF
Aqueles envolvidos na morte presumida por lei e na ocultação do cadáver de Rubens Paiva, poderão ser responsabilizados criminal e civilmente, por força de o STF estar disposto a decidir sobre o real alcance da famigerada lei da Anistia de 2010.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contestou no STF o primeiro dispositivo da lei de Anistia. Aquele que anistiava os "crimes de qualquer natureza" correlacionados com os delitos políticos ou de "motivação política".
O exame pelo STF do alcance deste supracitado artigo, com o filme a avisar que "Ainda Estou Aqui", certamente merecerá um melhor exame por parte dos ministros Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, que, à época, bateram o martelo interpretativo visto como continência aos militares da ditadura.
Espera-se que os dois ministros assistam ao filme de Walter Salles e façam a releitura da tragédia grega Antígona, de Sófocles.
O sepultamento, pelo lado humano ou à luz do direito natural, e aqui não se deve abrir a discussão para Hans Kelsen e a Teoria Pura do Direito, representa dar dignidade ao morto e a paz à família de Rubens Paiva.
Num pano rápido, o filme deverá, além do Oscar das nossas torcidas, ganhar o reconhecimento dos brasileiros, por sensibilizar o STF a melhorar a sua história.
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