O último sorriso: o primeiro caso de suicídio assistido da Toscana após lei
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Tudo estava sob segredo tumular. O jornalista Daniele Pieroni, 63 anos, em estado terminal decorrente de estágio avançado da doença de Parkinson, depois de longa batalha, faleceu feliz, sorrindo pelo alívio.
O enterro deu-se em 27 de maio passado, e apenas hoje, num trabalho de jornalismo investigativo do jornal Corriere della Sera, descobriu-se o primeiro caso de suicídio medicamentoso assistido na região da Toscana após aprovação de lei regional.
O médico que o assistiu foi o portador dos fármacos fornecidos legalmente pela agência sanitária.
Ao médico e aos demais presentes, o jornalista Pieroni contou ter tido, até a evolução da doença, uma vida feliz.
Mas relatou haver perdido a felicidade devido às dores fortes e permanentes, sem mobilidade e com alimentação por sonda. Passou a não mais viver, como concluiu.
Pieroni deixou claro, no momento do preparativo final, seu desejo irrevogável de parar de viver.
O jornalista deixou testamento biológico e, por anos, travou lutas administrativas e judiciais para obter autorização para o suicídio acompanhado.
Constituição e corte constitucional
Desde 2019, numa consulta feita (na Itália, diversamente do Brasil, a Corte Constitucional tem atribuição consultiva, além da jurisdicional), a Corte Constitucional da Itália admitiu o suicídio medicamentoso assistido.
O ministro da Saúde, Roberto Speranza, que serviu aos governos Giuseppe Conte e Mario Draghi, foi a principal voz a favor, por lei a ser elaborada, do suicídio medicamentoso assistido. Speranza, um jovem político de esquerda liberal, não era médico, mas ativista dos direitos humanos.
Esse posicionamento da Corte decorreu de profundo exame constitucional, a lembrar que a Constituição da Itália é de 1948. Ou seja, trata-se de um texto de um tempo em que o tema nem sequer era imaginado.
No entanto, os princípios constitucionais fundamentais relativos ao ser humano e à sua dignidade não foram olvidados pelos "pais da pátria", cabendo ao jurista Piero Calamandrei a elaboração do esboço dos direitos fundamentais, que recebeu plena aprovação.
A Corte Constitucional, então, oficiou ao Parlamento para que providenciasse a elaboração de uma legislação nacional, com disciplina uniforme, válida em todo o Estado italiano, que é unitário e não federativo.
O Parlamento italiano nada providenciou, e as discussões tornaram-se acaloradas num país católico e sob forte influência da Igreja, com o Vaticano ao lado e os jornais Avvenire (pertencente a um equivalente da CNBB) e L'Osservatore Romano (diário oficial do Vaticano) em todas as bancas.
Para os conservadores, os clérigos e a direita radical, a Itália, apesar da posição da Corte Constitucional em parecer consultivo, não deveria ser transformada numa Suíça. A Confederação Helvética admite, mediante regramento, o suicídio assistido.
Na consulta respondida pela Corte Constitucional foram estabelecidas, para a legislação nacional ou para as regionais, restrições básicas: interessado maior de idade, doença terminal grave, dor sem tratamento para contraste redutor, terapia paliativa em curso e vontade inconteste de colocar fim à vida.
A região da Toscana, dada a omissão do Parlamento, foi a única a baixar regulamentação, conforme constante da consulta respondida pela Corte Constitucional.
O jornalista toscano Pieroni, nascido e residente na cidade de Siena, usou a lei regional e, dentro do período de um ano, foi atendido.
Nesse ano de aguardo, foi visitado e teve parecer de um médico. Uma comissão ética acompanhou o caso e ofereceu parecer.
A maior dificuldade, no caso, foi encontrar um médico disposto a realizar a intervenção final.
'Estou feliz'
A derradeira frase de Pieroni, depois de se despedir da família e dos amigos, foi de emocionar: "Estou feliz". Pieroni sorriu e faleceu. O sorriso feliz de alívio permaneceu em sua face, conforme relataram os parentes e amigos.
Pano rápido: em todo Estado laico, o componente humanitário não pode ser desprezado, e o chamado suicídio medicamentoso assistido deve ser visto, observadas as normas constitucionais e legais, como um direito natural do ser humano.
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