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Wilson Levy

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

As vacinas para crianças, a cidade e os dilemas da participação social

Profissional de saúde aplica vacina em posto de São Paulo - Divulgação/Governo estadual de São Paulo
Profissional de saúde aplica vacina em posto de São Paulo Imagem: Divulgação/Governo estadual de São Paulo

Colunista do UOL

23/12/2021 23h53

A notícia não podia ser pior: o Ministério da Saúde decidiu submeter a vacinação contra a covid-19 de crianças ao escrutínio de uma consulta pública, mesmo após a Agência Nacional da Vigilância Sanitária (Anvisa) assegurar que uma das vacinas disponíveis no país era segura para o público de 5 a 11 anos.

A medida pode atrasar o início da imunização dos mais jovens. Embora menos suscetíveis ao desenvolvimento da forma grave da doença, eles não estão totalmente imunes e podem transmitir o vírus para familiares do grupo de risco.

A decisão causou uma enxurrada de críticas. Mais de 300 crianças nessa faixa etária morreram no Brasil desde o início da pandemia da covid-19, de acordo com os números oficiais, fora a subnotificação. Fossem 30, ou 3, e o assunto já causaria comoção em quem é pai ou mãe, ou em quem cultiva alguma compaixão pela vida humana.

Num primeiro olhar, chama a atenção o recurso a uma modalidade de participação social para, de forma deliberada, atrasar uma ação importante para a política pública de saúde. E, mais ainda, que quem adotou essa estratégia dilatória tenha sido o próprio Poder Executivo. Chama a atenção, também, que a participação social, que sempre foi uma agenda do campo progressista, esteja sendo colonizado por atores com discurso negacionista.

Esses desconfortos são importantes para pautar discussões relevantes para o planejamento das cidades. A diretriz da gestão democrática das cidades, inscrita no art. 2º do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) é o resultado de um processo histórico que remonta à redemocratização do Brasil, nos anos 80 do século XX. Foi bandeira de luta de grupos sociais comprometidos com transformações estruturais importantes para o país, tais como a reforma urbana.

Políticas de orçamento participativo e audiências públicas sobre diversos temas são legados de gestões municipais lideradas por prefeitos com visão progressista. E quase sempre esses espaços abrigaram disputas de agentes que partilhavam posições também identificadas a um viés progressista.

Hoje, audiências públicas são cada vez mais ocupadas por grupos sociais que, por vezes, sequer têm apreço pela democracia. Muitos deles aproveitam um certo refluxo que tem arrefecido os ânimos de movimentos tradicionalmente capazes de mobilizar pessoas.

Por uma questão de princípio, convém questionar a legitimidade de sua participação, em especial quando vocalizam desejos que não representam qualquer ilegalidade. É, no entanto, um processo que chama a atenção.

Além disso, é cada vez mais comum a judicialização de políticas públicas sob o pretexto de não terem obedecido à premissa da participação social. Aqui repousa um aspecto bastante problemático e que precisa ser analisado com cuidado, porque há muitas dúvidas em aberto.

De que maneira se cumpre a participação social? A mera convocação de uma audiência pública sem qualquer restrição a entrada de cidadãos resolve a questão? E se a audiência pública, mesmo sendo devidamente divulgada, não animar a adesão das pessoas? Terá sido observada a diretriz do Estatuto da Cidade?

Que parâmetros permitem avaliar o êxito (ou não) de um processo de escuta da sociedade? Pode aquele que requer essa providência ao Poder Judiciário impugnar uma audiência pública se julgá-la fracassada? E quem se responsabiliza pelas consequências da demora provocada por processos intermináveis de escuta? Ao Município é lícito testar uma determinada escolha de política pública antes de submetê-la a uma consulta pública?

E quando a participação é feita por grupos de interesse? Por advocacy ou lobbies? Há regras sobre quem pode participar? Ou pesos diferentes para cada manifestação?

Quando é o momento de encerrar a discussão e decidir? E se a decisão não espelhar o que for proposto nas etapas de escuta e, nada obstante, tiver justificativa técnica? Ou o contrário: se a manifestação da sociedade civil conduzir a uma situação tecnicamente precária ou equivocada?

São perguntas que a literatura majoritária sobre participação social no Brasil hesita em responder - talvez porque tenha se dedicado, no mais das vezes, a festejar momentos (efêmeros) de conquistas nesse campo no Brasil. É preciso enfrentá-las, sob pena de comprometer seus avanços mais importantes.

Wilson Levy é advogado, doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP com pós-doc em Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É diretor do programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: wilsonlevy@gmail.com