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Bolsonaro faz correlação enganosa entre queda de mortes e aumento de armas

5.jun.2022 - Post do presidente Jair Bolsonaro (PL) faz correlação enganosa entre queda de mortes e aumento de armas - Arte/UOL sobre Reprodução/Twitter Jair Bolsonaro
5.jun.2022 - Post do presidente Jair Bolsonaro (PL) faz correlação enganosa entre queda de mortes e aumento de armas Imagem: Arte/UOL sobre Reprodução/Twitter Jair Bolsonaro

Lucas Borges Teixeira

Do UOL, em São Paulo

05/06/2022 19h58

O presidente Jair Bolsonaro (PL) usou uma reportagem do UOL sobre o aumento de armas de fogo particulares no Brasil para fazer uma associação enganosa deste fato com a redução no número de homicídios no Brasil no ano passado. Segundo pesquisadores da área de segurança pública, esta correlação não existe. Os motivos para a queda nos assassinatos em 2021 são outros, como programas de governos estaduais e a diminuição dos conflitos entre facções criminosas.

O UOL publicou ontem uma reportagem mostrando que, desde o início do governo Bolsonaro, em 2019, mais de 1 milhão de novas armas particulares foram registradas no Brasil. O presidente compartilhou um post sobre a matéria no Twitter e escreveu: "Além da maior redução de mortes violentas da série histórica e o menor índice de homicídios em 15 anos."

De acordo com o SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade), do Ministério da Saúde, houve uma redução de 7% no número de assassinatos em 2021, com 45,5 mil mortes violentas — 30% a menos do que os 65,6 mil de 2017.

Três especialistas em segurança pública ouvidos pelo UOL Confere refutaram a correlação feita pelo presidente. Eles citaram três fatores principais para a redução dos homicídios: programas estaduais de redução da violência, com abordagens específicas para a realidade local, como o "Pacto Pela Vida", em Pernambuco, e o "Fica Vivo", em Minas Gerais; mudança na pirâmide etária brasileira, com envelhecimento da população; e o arrefecimento dos conflitos entre facções.

Não existe nenhum indício de que o aumento de armas reduz homicídio. Esse é um processo que tem muito mais a ver com dinâmicas internas, com ações que governos estaduais têm feito e que não tem absolutamente nada a ver com aumento de armas."
Rafael Alcadipani, professor da FGV-SP e membro do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública)

Para o sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Geni-UFF (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense), as facções criminosas de São Paulo e Rio de Janeiro completaram seus "ciclos de nacionalização", o que mudou a dinâmica dos conflitos entre elas.

"Seja por que houve acordo, seja por resolução violenta, este é um impacto importante, porque as disputas são resolvidas de maneira violenta e acentuaram os índices nos últimos anos", afirmou.

A afirmação do presidente não se assenta absolutamente em dados e evidências. Tanto internacionalmente como no Brasil, é ponto pacífico nas análises de homicídio que maior número de armas em circulação não diminui, mas aumenta os casos. Não é nem motivos de controvérsia, é só uma opinião do presidente que não tem respaldo nenhum."
Daniel Hirata, coordenador do Geni-UFF

O policial federal Roberto Uchôa, membro do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), lembrou que 2017 registrou o recorde de assassinatos da série histórica do SIM, iniciada em 1996, e foi também o ano mais violento de disputa territorial de facções por todo o país.

"Em 2017, houve o auge dessas disputas e, não coincidentemente, o auge de mortes em diversos estados. Com os conflitos resolvidos, a dinâmica mudou. É o que chamo de profissionalização desses mercados ilegais. Eles perceberam que o confronto e a violência são ruins inclusive para os criminosos, não dão lucro", afirmou.

Em seu livro "Armas Para Quem? A Busca por Armas de Fogo", Uchôa mostra como o aumento da circulação de armas de fogo desde os anos 1980 no país fez também como aumentassem os assassinatos por arma de fogo.

Em 1980, armas de fogo eram responsáveis por 43% das mortes. Em 2003, representavam 70%, número que se estabilizou até 2014. Em 2020, já subiu para 78%, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do FBSP.

    Se essa relação [feita por Bolsonaro] fosse realidade, isso deveria ter alguma correlação percentual. Ou seja, deveria ocorrer em todos os estados, na proporção em que também se aumentou a circulação de armas. Em 2020, a gente teve aumento de homicídios [em relação a 2019], bem em meio à pandemia e com aumento de armas."
    Roberto Uchôa, membro do FBSP

    Segundo o último anuário do FBSP, o número de homicídios cresceu 4% em 2020 em relação a 2019 (de 47.742 para 50.033 assassinatos).

    "E aí, como se explicaria isso sob essa ótica? Fazer uma afirmação dessa é irresponsabilidade, uma correlação simplista para algo muito complexo", argumenta Uchôa.

    Estudos mostram relação entre mais armas e mais mortes

    A correlação entre o aumento de circulação de armas e o aumento de homicídios, na direção oposta do que diz Bolsonaro, já foi constatada por diversos estudos, como o UOL Confere já mostrou.

    O último Atlas da Violência, elaborado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) com o FBSP e publicado em agosto, afirma que "há consenso na literatura especializada do campo da segurança pública de que quanto mais armas disponíveis e em circulação, maior a probabilidade de crimes".

    O estudo "Dossiê Armas, Crimes e Violência", do pesquisador Thomas Conti, publicado em 2017, analisou 61 pesquisas sobre armas e criminalidade e constatou que 90% delas refutam a tese "mais armas, menos crimes".

    O estudo "Mapa das Armas de Fogo nas Microrregiões Brasileiras", publicado pelo Ipea em abril de 2013, estimou que um aumento de 1% no número de armas de fogo em circulação elevava em até 2% a taxa de homicídio. A pesquisa também identificou que as áreas com maior difusão de armas de fogo apresentavam uma taxa de homicídios 7,4 vezes maior que as de menor difusão.

    O estudo "Menos Armas, Menos Crimes", publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2012, mostra a importância do Estatuto do Desarmamento, que entrou em vigor em 2003, para a redução dos homicídios no Brasil.

    Segundo o estudo, usando como base o estado de São Paulo, mais populoso do país, o número de homicídios diminuiu 60,1% de 2001 a 2007 ao passo que outros tipos de crime aumentaram -- contra o patrimônio, em 20%, por exemplo.

    "Com efeito, os crimes que tiveram uma maior queda foram aqueles geralmente praticados com o uso da arma de fogo. Mais interessante ainda, esta diminuição ocorreu de forma mais acentuada exatamente após a entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento", avalia o estudo.

    Assinado pelos pesquisadores Daniel Cerqueira e João Manoel Pinho de Mello, o estudo rebate ainda outro ponto frequentemente levantado por Bolsonaro: circulação de armas não impede outros crimes, só aumenta mortes.

    Os resultados deste estudo sugerem, ainda que de forma indireta, que, pelo menos no estado de São Paulo, o criminoso profissional não se abstém de cometer crimes em razão de a população se armar para a autodefesa. Porém, a difusão das armas de fogo nas cidades é um importante elemento criminógeno para fazer aumentar os crimes letais contra a pessoa."
    Estudo "Menos Armas, Menos Crimes", do Ipea

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    Errata: este conteúdo foi atualizado
    O Estatuto do Desarmamento entrou em vigor em 2003. Anteriormente, o texto informava que o estatuto havia sido estabelecido em 2005 após plebiscito. O que aconteceu em 2005 foi um referendo sobre o artigo 35 do texto, que proibiria a comercialização de arma de fogo e munição, mas foi rejeitado.