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Longe do trânsito, aulas práticas para futuro motociclista têm eficácia colocada em dúvida

Ana Paula Rocha

Do UOL, em São Paulo

24/06/2012 06h00

Os alunos que pretendem conduzir motos têm aulas práticas de direção, no entanto, eles não aprendem a dirigir nas ruas. Essas aulas práticas sem a ida às ruas podem estar ligadas à quantidade de acidentes envolvendo motociclistas? Profissionais que atuam em entidades que representam os Centros de Formação de Condutores, os CFCs, defendem que sim. Segundo especialistas, a formação do motociclista pode ser um dos fatores por trás dos altos índices de acidentes envolvendo motociclistas [veja o vídeo abaixo].  Além disso, a reportagem do UOL apurou que falta consenso sobre a forma correta de conduzir as aulas práticas entre o Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), órgão máximo executivo de trânsito no país, e o Detran-SP, entidade cuja obrigação é por em prática e fiscalizar as decisões do Denatran no Estado de São Paulo.

Para obter a carteira nacional de habilitação do tipo A, que permite o tráfego em moto, o futuro condutor precisa fazer 45 horas de curso teórico, que aborda, entre outros, direção defensiva e primeiros socorros. Também são necessárias pelo menos 20 horas de aulas práticas, das quais 20% têm que acontecer à noite. Nesta etapa são abordados aspectos como normas de circulação e conduta, sinalização e comunicação e cuidados na condução de passageiro, entre outros.


Um dos aspectos mais criticados é o de que os alunos não circulam com as motos no trânsito, como acontece com aqueles que passam pelos CFCs para obter a carteira que dá permissão para conduzir carros, a da categoria B. “A qualificação é muito deficiente, porque o treinamento é feito em ambiente fechado. De posse da carta, o aluno vai para o trânsito, desconhecendo tudo que vai acontecer neste trânsito”, diz o diretor de comunicação da Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego), Dirceu Rodrigues Alves Junior. Ele apoia a ideia de que os CFCs tenham simuladores que permitam a reprodução de situações reais em um ambiente controlado.

A qualificação também é criticada pelos representantes das escolas. “Alguns CFCs dão aulas em via pública, mas em locais ermos e fechados. É como se fosse uma área confinada da mesma forma”, diz o presidente do Sindicato das Auto Moto Escolas e CFCs do Estado de São Paulo, José Guedes Pereira. Para ele, ainda que haja uma determinação de que os alunos façam aulas em via pública, o grande problema é como garantir a segurança deles e dos instrutores. “Quem vai definir quando o candidato tem pleno domínio do veículo? É o instrutor, que aí vai ser responsável pelo que acontecer com ele em via pública?”, questiona.

“Eles [os condutores] apenas são preparados para passar no exame, e não para enfrentar o trânsito das grandes metrópoles. A aula em via pública é essencial para a formação do condutor, mas isso no país não é cumprido. Claro que vai haver rejeição, mas é preciso sentar e discutir isso. O grande problema é que não há fiscalização”, diz o presidente da Federação Nacional das Auto Escolas e CFCs, Magnelson Carlos de Souza.

Falta de consenso

A resolução do Contran (Conselho Nacional de Trânsito) que determina as regras da qualificação é a nº 168. Respondendo a questionamentos da reportagem do UOL sobre a obrigatoriedade de haver aulas práticas em via pública, parece faltar consenso entre o Denatran e o Detran-SP. O primeiro diz que as aulas práticas em via pública são obrigatórias.

Já o Detran-SP declarou, através de sua assessoria de imprensa, que a resolução não especifica número mínimo ou máximo de aulas práticas de pilotagem de motocicleta a serem realizadas em área de treinamento específico ou em via pública, como existe quanto à realização de aulas em período noturno. O Detran-SP comunicou que “fiscaliza o comparecimento do aluno às aulas e o cumprimento da carga horária determinada pela legislação (incluindo as aulas noturnas, que estão especificadas)”.

A redação da resolução diz que as aulas práticas devem acontecer em área de treinamento específico até o pleno domínio do veículo, e em via pública, urbana e rural, em prática monitorada.

O Denatran não se pronunciou sobre o assunto, no entanto, através da assessoria de imprensa, informou que há um grupo de trabalho formado por especialistas estudando mudanças no que diz respeito à qualificação dos motociclistas, mas que estas ainda não foram definidas.

Para o coordenador do Núcleo de Estudos em Segurança no Trânsito da USP, Coca Ferraz, não é possível garantir o quanto a qualificação influencia na quantidade de acidentes com motos. Para ele, a formação dos condutores pode ser um dos fatores, mas está longe de ser o único. Ele relaciona a vulnerabilidade da moto com o fato de que, como a moto é um veículo de duas rodas, está sujeito a acidentes que não ocorrem com quem conduz carros, como o desequilíbrio, que gera quedas e perda da direção. Além disso, outros fatores agravantes seriam o menor tamanho, que dificulta a visibilidade por parte de motoristas de veículos maiores, e a falta de proteção a qual a moto expõe o condutor.

Ele cita dados apresentados recentemente no Congresso Ibero-Americano de Segurança Viária, para comparar a realidade brasileira com a de outros países, onde a qualificação é diferente da brasileira. Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, os riscos de sofrer acidentes com motos são 28 vezes superiores em comparação aos riscos com carros. Já nos países da União Europeia, este índice é de 20 vezes. Entretanto, Ferraz concorda que mudanças na qualificação são necessárias. Para ele, mais grave do que não fazer aulas em vias públicas, é o aluno não conduzir uma vez se quer em rodovia. “Muitos não fazem aula em condição de chuva. Provavelmente, eles não vão nem ao menos em uma via expressa, como a Marginal, em São Paulo”, declara.

O analista de trânsito Luís Miura diz que, ainda que julgue a qualificação de motociclistas deficiente, o principal problema que leva os acidentes de trânsito com motos a índices tão altos é a fiscalização deficiente, que, na opinião dele, não pune da maneira adequada os infratores. Para Miura, levar os alunos à rua não é uma situação segura, embora concorde que a legislação exige que isso seja feito. “O órgão de trânsito precisaria ter uma área para simular situações o mais próximas possível do trânsito”, declara.

Em 29 de maio deste ano, uma audiência pública realizada pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal tratou sobre a "epidemia" de acidentes com motos no Brasil. Um dos temas abordados foi a qualificação de motociclistas. A audiência não rendeu a elaboração de nenhum projeto de lei propondo mudanças em relação a isso, mas estimulou a aprovação de um requerimento para que em setembro seja feito um seminário sobre vítimas de acidentes envolvendo motos, para que outras entidades interessadas possam participar. A expectativa é de que depois disso projetos de lei ligados ao assunto possam ser sugeridos no Senado.