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"Tilintar de chaves me incomoda até hoje", diz torturado durante ditadura

A Comissão Nacional da Verdade e a Comissão da Verdade do Rio realizaram uma audiência sobre tortura e mortes na Vila Militar de Deodoro, no Rio de Janeiro, nesta sexta-feira (24) - Bruno Marins/CEV-Rio
A Comissão Nacional da Verdade e a Comissão da Verdade do Rio realizaram uma audiência sobre tortura e mortes na Vila Militar de Deodoro, no Rio de Janeiro, nesta sexta-feira (24) Imagem: Bruno Marins/CEV-Rio

Giuliander Carpes

Do UOL, no Rio

24/01/2014 13h42

O trauma da tortura durante a ditadura militar se manifesta de forma diferente em cada ex-militante que sofreu violência. Durante depoimento na Comissão Nacional da Verdade nesta sexta-feira (24) no Rio de Janeiro, o ex-comandante do movimento VAR-Palmares, Antonio Espinosa, afirmou que até hoje não pode escutar tilintar de chaves.

"Passei 29 dias sendo levado da minha cela solitária para a sala de tortura na Vila Militar. O tilintar de chaves no corredor da cela significava que o suplício ia começar de novo, que eles estavam vindo me buscar", afirmou o jornalista.

Ele deu depoimento sobre o caso da morte do colega de VAR-Palmares, Chael Schreier. Eles foram presos juntos, em novembro de 1969, e Chael morreu durante a tortura.

Chael foi um dos únicos casos de mortos durante a ditadura que não tiveram um laudo de necrópsia adulterado. No documento, está claro que o militante morreu em decorrência de ferimentos por causa da tortura.

"A revista Veja publicou o laudo. Então logo após se estabeleceu a censura prévia. Perceberam que era preciso matar as notícias na fonte. A está matéria e à morte do Chael, eu devo a minha vida. Se haveria alguém que eles teriam interesse de matar (porque era comandante do grupo), seria a mim. Fiquei 29 dias lá. 22 deles passei por tortura. Depois fui transferido para outro lugar", lembra Espinosa.

Ele narrou os procedimentos de tortura pelos quais passou junto com namorada Maria Auxiliadora Barcelos e Chael. "Havia duas salas de tortura e colocavam uma pessoa em cada. O outro ficava sentado ao lado. Era uma maneira para que o outro se auto torturasse. Só tinha uma forma de se livrar daquilo: dormir. Tratei como obrigação revolucionária. Aprendi a dormir. Enquanto eu dormia, sonhava, estava na praia, tomando quartéis", recorda Espinosa.

O jornalista acredita ter visto o momento do ferimento que causou a morte do companheiro. "Além dos palavrões e ofensas que visavam a Maria, criavam situações de constrangimento sexual. Ela ficou presa nua em uma jaula em frente à tropa. Como ela era bonita, deveria ser um espetáculo para os soldados. Para ela era um sofrimento enorme. Empurraram o Chael para ela, mas ele se recusava. Quando ele se recusou, um cabo chamado Mendonça deu com o cabo da arma no peito do Chael. Na hora levantou no meio do peito dele uma bola arroxeada. Ele era uma pessoa gorda, mais de 100 kg, e estava fazendo regime absurdamente rigoroso. Comia folha de alface e tomava água. Emagreceu 40 kg e estava fragilizado."

Maria se suicidou sete anos depois no exílio. Ela se atirou em frente a um trem em Berlim. Espinosa é o único sobrevivente daquele grupo de presos. "Tentativa de estrangulamento era refresco. Usaram muito máquina de choque. Tesouras simulando cortar bico de peito, do pênis. Aplicavam "telefones" nos nossos ouvidos. A partir do segundo dia entrou em cena o pau de arara", relata o ex-militante. "

Nem todo dia tinha pau de arara porque os militares percebiam que não tinha como resistir. Havia fuzis, coronhadas. Eu achava a tortura menos ruim quando me batiam de socos, pontapés porque aí você consegue sentir ódio. E o ódio fortalece. Quando te agridem vendado era pior", observa Espinosa.