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Cantada agressiva que incomoda a mulher pode ser considerada assédio

Trecho de infográfico da pesquisa Chega de Fiu Fiu mostra que mulheres trocam de roupa com medo de assédio - Reprodução/Think Olga
Trecho de infográfico da pesquisa Chega de Fiu Fiu mostra que mulheres trocam de roupa com medo de assédio Imagem: Reprodução/Think Olga

Andrea Dip

Da Agência Pública

19/12/2014 06h00

A defensora pública Ana Rita Souza Prata explica que se a abordagem PUA invade o espaço da mulher na rua ou em uma casa noturna a ponto de incomodar a mulher encaixa-se no contexto de assédio e se houver contato físico pode caracterizar violência. “Se o cara pega na mulher sem ela dar abertura isso já é uma violência. ‘Ah, mas eu só flertei, só paquerei’. Se não há consentimento e abertura é uma violência” define.

“E a gente sabe que por trás disso está uma forma de dominação. O espaço público é meu, é masculino e eu vou fazer aqui o que eu quiser. Os crimes sexuais não são só os de filme americano ou o maníaco do parque. As violências acontecem dentro dos relacionamentos e nas ruas todos os dias e por isso você treinar homens para esse tipo de abordagem é um absurdo. Com a cartilha a gente quer conscientizar de que o assédio é uma violência sexual e pode sim ser caracterizada como crime”, detalha a defensora.

Perante a lei, o assédio sexual se restringe ao ambiente de trabalho, mas existem as tipificações de importunação ofensiva ao pudor e atentado ao pudor (no caso de não haver contato físico) que podem ser aplicadas caso a vítima deseje denunciar esse tipo de abuso. A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o Ministério da Justiça, a Secretaria de Políticas para as Mulheres, a 1ª e a 2ª delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo e a Delegacia de Polícia do Metropolitano e foi informada de que não existem estatísticas específicas sobre estas contravenções.

Mas a recomendação do Nudem (Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher) da Defensoria Pública de São Paulo e da própria SPM é a de que as mulheres denunciem esse tipo de assédio. “A sociedade ainda naturaliza a cantada de rua, até porque justifica essa violação de direitos das mulheres pela roupa curta, pelo decote. Como se a mulher fosse culpada. Mas quanto mais as mulheres denunciarem ao 180 ou às delegacias especializadas pra colocar isso em pauta para a gente mobilizar o sistema de justiça, mais a gente vai conseguir combater essa impunidade”, defende a secretária adjunta de Enfrentamento à Violência da Secretaria, Rosangela Rigo.

Ela reconhece que o 180 ainda não recebe muitas denúncias desse tipo, mas lembra que por muito tempo a violência doméstica também não era denunciada por ser naturalizada. “Por isso essas campanhas, marchas e caminhadas de mulheres são tão importantes. Para que aumente essa conscientização e o empoderamento das mulheres e diminua a naturalização desse tipo de comportamento”.

A doutora em psicologia Daniela Rozados, que faz parte do PoliGen, grupo de estudos de gênero da Escola Politécnica da USP, vai além. Para ela, muitas vezes a própria agredida não se reconhece como vítima, tamanha é a naturalização do assédio. “Por vezes a mulher não percebe o quanto o ir e vir dela no espaço público está condicionado a esse papel. Isso que eu acho mais grave em termos psicológicos. Porque ela fica aprisionada no discurso machista de que ela não existe como sujeito. Isso em si já é bastante sofrido, mas muitas vezes a vítima não percebe que isso é produtor de sofrimento. Nessas abordagens do PUA ou no assédio de rua, o corpo está ali para satisfazer desejos. Mas quando não é física, essa violência está tão incrustada que é de baixa percepção por parte da própria vítima. E para quem reconhece como violência gera nervosismo, ansiedade, medo de andar por determinados lugares”.

Daniela lembra um estudo da engenheira Haydee Svab para explicar como homens e mulheres se apropriam de forma diferente da cidade: “O mapa mental da cidade da mulher é menor do que o mapa mental do homem, o espaço público é extremamente condicionado ao gênero. Horários, regiões da cidade, meios de transporte, pontes. Mulheres têm medo de andar em pontes por causa das reiteradas histórias de estupro, por exemplo. Deixam de aceitar trabalhos porque teriam que andar a pé a noite ou pegar um ônibus em um lugar ermo”.

Ela lembra que para o homem às vezes é difícil perceber a gravidade do assédio porque nunca acontece quando ele está junto. “Quando o homem é o agente da agressão, acha que está tudo bem. E quando está com sua companheira não vê acontecer porque um macho respeita o outro macho. Tem um discurso de que ‘o homem não pode se conter’, que além de tudo culpabiliza a mulher, mas na minha percepção isso tem mais a ver com uma punição. ‘Você saiu do esperado, usou uma roupa mais curta, foi mais longe, circula sozinha, então a gente vai ter que te punir da forma mais tosca que a gente conhece’. Porque a rua é do homem. E se você está lá, seu corpo está à disposição. Se você usa seu peito para vender cerveja ou desfilar no carnaval ok, porque todo mundo está lucrando. Se quiser deixar o peito de fora porque está calor, quer fazer um topless na praia ou simplesmente amamentar seu bebê, não. Porque teu corpo não te pertence. Ele pertence aos homens ou ao Estado, no caso do aborto, por exemplo”.

Sobre o PUA, acrescenta: “Se você com o mesmo discurso conquista todas, não tem um sujeito ali, não existe autonomia. É um ser destituído de individualidade, de desejo, um objeto. Uma pessoa para dizer ‘não’ precisa ser um sujeito. Pode ser que essas pessoas nem estejam necessariamente querendo ser violentas, o problema é você estar andando na rua e ter sua intimidade violada constantemente pelo desejo do outro que acha que pode te abordar. É a afirmação dessa violência constante, dessa cultura do estupro que acua as mulheres todos os dias. E isso tem que parar”.