Bala perdida ressurge com força e faz Rio reviver temor da década de 1990
Fernanda Fernandes Carracelas, 3, morreu em novembro de 1989, ao ser atingida por uma bala perdida na cabeça quando brincava no parquinho da creche. O caso teve grande repercussão na época. Mais de duas décadas se passaram, e o Rio de Janeiro viveu intensas mudanças nesse período, inclusive na área da segurança pública. Porém, em 17 de janeiro desse ano, a mãe e o padrasto de Larissa de Carvalho, 4, viram com os próprios olhos a menina morrer nas mesmas circunstâncias que vitimaram Fernanda: ferida por uma bala perdida na cabeça.
Em 11 dias, o Estado do Rio acompanhou o ressurgimento do fenômeno da bala perdida, que, durante a década de 1990, estampou diversas capas de jornais cariocas. Nesse ano, foram 16 casos de pessoas inocentes atingidas por disparos na região metropolitana do Rio e na Baixada Fluminense, das quais quatro morreram. O caso de Larissa foi o mais emblemático. No momento em que foi alvejada, a criança saía de um restaurante em Bangu, na zona oeste da capital, acompanhada da mãe e do padrasto.
No começo de 1990, em um período de dois meses, a polícia contabilizava nove mortes por bala perdida apenas na cidade do Rio, sendo a maioria de crianças. À época, as favelas eram verdadeiras fortalezas do tráfico de drogas. Os criminosos travavam confrontos à distância, de um morro para o outro, com projéteis luminosos --os chamados tiros "traçantes". Na ocasião, o temor levou proprietários de apartamentos e estabelecimentos comerciais a instalar blindagem e chapas metálicas nas janelas.
"Os cariocas já começam a procurar soluções para se proteger do perigo das balas perdidas. Uma advogada que mora na rua Nascimento Silva, em Ipanema, mandou instalar na janela de seu apartamento vidros reforçados, à prova de bala. A direção do colégio São José, no alto da rua Conde de Bonfim, na Tijuca, atendeu o pedido dos pais de alunos e instalou chapas metálicas em cada uma de suas janelas de frente para o morro do Borel. Uma moradora da Barão da Torre pensa em seguir os conselhos de amigos e instalar persianas de alumínio com areia, para diminuir a velocidade dos tiros", informava reportagem do jornal "O Globo", intitulada "Balas perdidas aterrorizam os cariocas" e datada do dia 16 de dezembro de 1990.
Entre os anos de 1995 e 1997, as notícias sobre vítimas de balas perdidas eram praticamente diárias. Um dos disparos atingiu, em 1996, o Palácio da Cidade, sede da Prefeitura do Rio, a 13 metros do gabinete do então prefeito Cesar Maia. Esse fato deu início a um confronto verbal, por meio de declarações à imprensa, entre Maia e o então governador Marcelo Allencar. O prefeito chegou a "se oferecer" para ocupar a Secretaria de Estado de Segurança Pública.
"Infelizmente, aqui se dá tiro à vontade. Eu esqueci o meu colete à prova de balas. Agora vou ter que usar também um capacete. É uma pena que eu não esteja com ele aqui porque daria uma ótima foto. O Rio virou uma espécie de Bósnia tropical", ironizou o ex-prefeito em entrevista ao jornal "O Globo", no dia 6 de dezembro de 1996. "Daqui a pouco isso aqui está como a Bolívia, onde roubam até óculos de grau", completou ele.
As últimas estatísticas sobre balas perdidas fornecidas pelo ISP (Instituto de Segurança Pública) são de 2012. Naquele ano, em seis meses, o Estado teve 61 vítimas, das quais duas morreram. Ou seja, o Rio teve, em apenas 11 dias, quase um terço do total de casos de balas perdidas que ocorreram no primeiro semestre de 2012, além do dobro de mortes.
Na avaliação do antropólogo e especialista em segurança pública Paulo Storani, que era policial do Bope (Batalhão de Operações Especiais) na década de 90, o problema está relacionado com perda de territórios por parte do crime organizado. "Muitos desses casos foram originados pela disputa entre facções rivais. Com as UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora], muitos criminosos ficaram sem território e há uma necessidade de se adaptar a um novo cenário, onde eles precisam buscar novas áreas e, eventualmente, tomar territórios de outras facções", disse.
Já o sociólogo e coordenador do LAV-Uerj (Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Ignacio Cano, afirmou ainda não ser possível avaliar se os casos recentes são uma "casualidade dramática" ou se apontam, de fato, para um retorno à realidade de segurança pública que marcou os anos 1990. "São casos que causam muita comoção, sem dúvida. Mas é cedo para dizer se eles são uma casualidade ou uma coisa mais profunda. Há dois anos, o cenário vem mudando no Rio e os homicídios estão aumentando. Com isso, aumenta a possibilidade de bala perdida", disse Cano.
Em nota, a Secretaria de Estado de Segurança Pública informou apenas que "todas as ocorrências envolvendo vítimas de arma de fogo serão objeto de investigação da Polícia Civil para identificação dos responsáveis pelos crimes de homicídio ou lesão corporal".
Pais relatam insegurança
Ouvidos pelo UOL, pais de pessoas que saíram de outros Estados para trabalhar e morar na capital fluminense afirmaram que a preocupação com a segurança dos filhos é inevitável. "Eu entrei em pânico quando vi esses casos de bala perdida no noticiário. Eu sei que ela trabalha, mas ela é uma menina que passeia muito. Ela sai à noite, almoça em restaurantes, vai para bares, museus, bibliotecas. Eu fico pensando: de repente, se uma bala pega ela? O Rio sempre teve essa coisa de bala perdida. Parece que a central do crime está lá", afirmou Inês Duarte Lourenço, que mora em Porto Alegre. Sua filha está no Rio há pouco mais de dois anos. "Eu sou uma mãe muito mais alarmista do que protetora", finalizou.
Já o gaúcho Paulo Bianchi, natural de Caxias do Sul, disse "ficar com o coração na mão" ao lembrar que sua filha mora e trabalha no Rio de Janeiro. "A gente se preocupa 24 horas por dia. Em uma cidade como o Rio, que é muito grande e tem uma história antiga de conflitos, sempre que a gente vê o noticiário, já penso na minha filha. Já perco a tranquilidade. A preocupação é grande, mas só nos resta entregar nas mãos de Deus", relatou.
Maria Inês da Silva Cardoso, natural de São José do Rio Preto (SP), contou que, se não fosse otimista, já "teria sequestrado o filho" para garantir o seu retorno ao interior paulista. "Quando eu vejo essas notícias, tento abstrair e pedir a Deus que olhe por ele. São riscos que existem, de fato, mas eu não quero ter essa insegurança porque o meu filho está morando no Rio, não tem jeito. Cabe a ele analisar com cuidado os lugares que ele frequenta. Pai e mãe não têm controle sobre isso", afirmou.
Turismo pode ser afetado em longo prazo
O presidente do SindRio (Sindicato de Hotéis, Bares e Restaurantes do Rio), Pedro de Lamare, afirmou ao UOL que, até o momento, ainda não foi possível avaliar possíveis impactos negativos no comércio e no turismo em decorrência da recente onda de violência. "Ainda não dá para sentir. É muito cedo. A gente tem realidades totalmente diferentes, na comparação entre os anos 90 e agora. Mas pensando em médio e longo prazo, se esses casos de bala perdida continuarem acontecendo, é claro que hotéis, bares e restaurantes vão sofrer as consequências", declarou.
Lamare destacou que, nos últimos anos, com a implementação da política das UPPs, os turistas passaram a ter uma "sensação maior de ordem pública e segurança", ainda que a cidade tenha tido vários casos que desafiaram essa lógica. Segundo ele, o Rio precisa ser visto como "um ativo turístico nacional" para que hajam investimentos do governo federal em segurança. "Quando se fala de Brasil, se fala de Rio de Janeiro. Houve um crescimento enorme do turismo interno, por exemplo, porque as pessoas se sentiam mais seguras. Não podemos perder isso", disse.
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