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Erguida em torno da maior hidrelétrica de SP, Ilha Solteira pede água

Braço do reservatório de Ilha Solteira (SP), no noroeste paulista; a área é uma das mais atingidas pela crise hídrica que afeta o Sudeste - José Eduardo Bernardes/Agência Pública/Greenpeace
Braço do reservatório de Ilha Solteira (SP), no noroeste paulista; a área é uma das mais atingidas pela crise hídrica que afeta o Sudeste Imagem: José Eduardo Bernardes/Agência Pública/Greenpeace

José Eduardo Bernardes e Thaís Aleixo

Da Agência Pública

12/03/2015 06h00

As usinas hidrelétricas, instaladas em grandes cursos de rio, representam a maior fatia da geração de energia no Brasil, com 62,8% de toda a capacidade instalada.

Com a estiagem que acomete o país, principalmente a região Sudeste, 85% dos reservatórios estão mais baixos do que em 2001, quando o país sofreu um apagão que atingiu três regiões. Afinal, quanto menos água, maior a dificuldade de produzir eletricidade: as hidrelétricas usam a força da água para movimentar suas turbinas, similares a cata-ventos, que acionam os geradores quando giram.

No ápice da crise hídrica do Sudeste – a pior “em mais de 200 anos”, segundo o professor de Hidráulica e Saneamento na Engenharia Civil da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Ilha Solteira, Jefferson Nascimento de Oliveira -, os limites da opção preferencial pelas hidrelétricas no modelo energético brasileiro se revelam. A Agência Pública (www.apublica.org), em parceria com o Greenpeace, relata esse momento atual.

O apagão momentâneo que atingiu 12 Estados no último dia 19 de janeiro – o sistema energético é integrado, ou seja, as usinas distribuem energia para todas as regiões do país – está relacionado não apenas ao pico concentrado de consumo que teria provocado uma sobrecarga no sistema, segundo especialistas – ou uma “falha no sistema de transmissão”, de acordo com o governo –, mas também ao baixo nível dos reservatórios.

É o que diz o diretor do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, o físico Luiz Pinguelli Rosa, que defende o racionamento de energia durante a crise. “Rápido, só o racionamento, que já devia estar sendo adotado há muito tempo”, afirma.

Segundo a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), a energia que move o país – que tem capacidade instalada de 133,9 mil MW – é proveniente de 202 usinas hidrelétricas, 1.935 termelétricas, 228 usinas eólicas, 2 usinas nucleares, 487 pequenas centrais hidrelétricas, 497 centrais geradoras hidrelétricas e 311 usinas solares.

Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, os reservatórios estão com 17,43% de sua capacidade. No noroeste paulista, a Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira, entre as cidades de Ilha Solteira, em São Paulo, e Selvíria, no Mato Grosso do Sul, é uma das mais atingidas.

De acordo com a Área de Hidráulica e Irrigação da Unesp de Ilha Solteira, o município localizado a 680 km da capital acumulou 36 mm de chuva até 22 de janeiro de 2015, ou seja, aproximadamente 15% da média histórica para o mês, que é de 232 mm. É a pior média pluviométrica desde 1992, quando o levantamento dos índices de chuva em Ilha Solteira começou a ser feito.

A queda do nível da água no rio Paraná levou o volume útil do reservatório a zero, ou seja, inferior a 323 metros acima do nível do mar, a cota mínima para operação, desde junho de 2014 de acordo com o site do ONS (Operador Nacional do Sistema), órgão responsável por gerenciar a produção e transmissão de energia elétrica no Brasil.

O projeto de Ilha Solteira permite que essa cota desça a até 314 metros, limite mínimo de profundidade para não danificar os equipamentos. Segundo a Cesp (Companhia Energética de São Paulo), a empresa estatal que administra a usina, a Hidrelétrica de Ilha Solteira gerou 1.117 megawatts (MW) em dezembro de 2014. O valor é 55% menor do que a energia gerada no mesmo mês de 2013 (2.026 MW). No mesmo período, o nível do reservatório, que era de 326,31, caiu para 320 metros. Em dezembro de 2014 e no primeiro mês de 2015, baixou ainda mais, para 318,77 metros.

Concluída em 1978, a Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira tem capacidade de geração de 3.444 MW e é composta por 20 turbinas – hoje, por causa da estiagem, parte delas está desligada. A hidrelétrica é a maior do Estado de São Paulo e a terceira maior do Brasil. A barragem no Rio Paraná mede 5.605 metros de comprimento e o reservatório tem quase 2 mil km² de área, estocando a água do rio para a produção de energia.

Nem todas as hidrelétricas utilizam reservatórios; as usinas a “fio d’água” aproveitam a velocidade do rio para gerar energia. É o caso da Usina de Jupiá, que fica a 66 km de Ilha Solteira, entre os municípios de Castilho (SP) e Três Lagoas (MS).

Juntas, a Usina de Jupiá e a Hidrelétrica de Ilha Solteira integram o Complexo Urubupungá, com capacidade instalada total de 4.995 MW. As duas usinas foram construídas quase simultaneamente pela empreiteira Camargo Corrêa e ambas são geridas pela estatal paulista. À época da construção, a Cesp ainda não existia e quem tocou as obras foi a Celusa (Centrais Elétricas de Urubupungá S.A), mais tarde incorporada a outras cinco companhias estaduais, que dariam origem à Companhia Energética de São Paulo. 

O profeta das águas

Ruínas de Rubineia (SP) - Thais Aleixo/Agência Pública/Greenpeace - Thais Aleixo/Agência Pública/Greenpeace
Ruínas de Rubineia (SP), alagada quase totalmente pela barragem da usina em 1973
Imagem: Thais Aleixo/Agência Pública/Greenpeace

A construção da Usina de Ilha Solteira modificou para sempre o rio Paraná, que passou a ser regido pela dinâmica de produção da hidrelétrica, e também a região atingida pela barragem. Segundo o Observatório Sócio-Ambiental de Barragens da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), não há relatos de pessoas que foram atingidas pela construção da barragem em Ilha Solteira, mas isso porque os impactos foram absorvidos por cidades próximas como Santa Fé do Sul e Rubineia, esta alagada quase em sua totalidade pela barragem em 1973. O cineasta Leopoldo Nunes, que nasceu em Santa Fé do Sul, conta que muitas das pessoas atingidas pelas águas do rio Paraná foram “indenizadas com merreca e, se não gostou, amém”.

Para Leopoldo, o “impacto social, ambiental e econômico da usina foi todo negativo”, trazendo alterações “absurdas” para o microclima na região.

“As chuvas não precipitam mais por ali, somente mais à frente, porque não existe mais vegetação. Acabaram com o rio, que era extremamente caudaloso, um dos sistemas mais ricos de piscicultura”, diz, contabilizando as perdas. “Só hoje, com o lago inundado, fizeram um levantamento de diversos sítios arqueológicos”, conta o autor do documentário “O Profeta das Águas”, que narra a saga de Aparecido Galdino Jacintho, o “profeta e curandeiro” que liderou camponeses contra a barragem de Ilha Solteira e a destruição de Rubineia e do ecossistema do rio Paraná.

Galdino acabou preso pela ditadura em 1970, acusado de curandeirismo, e grande parte da população afetada pelas cheias se deslocou para a cidade de Americana (SP), dando lugar à construção da cidade de Ilha Solteira que até hoje vive em função da usina.

“Hoje, a produção de energia dá mais ou menos 80% do nosso ICMS, então o impacto de uma interrupção seria violento”, diz o ex-engenheiro da Cesp e prefeito de Ilha Solteira, Bento Carlos Sgarboza (DEM).

O prefeito, os técnicos envolvidos com o funcionamento da usina, os pesquisadores que se instalaram no município, além da Unesp e dos cidadãos locais, preocupam-se constantemente com os índices pluviométricos.

O nível do reservatório tem caído cada vez mais, prejudicando também as outras atividades econômicas do município: o turismo nas praias artificiais em torno do lago, a piscicultura baseada na criação de tilápias em tanques-rede por cerca de 40 produtores (pequenos, médios e grandes) e a pesca artesanal, além de faltar água para a irrigação de plantações.

“A gente tem notado esforço da Cesp para manter o controle. Até março, abril, é época de chuva, de recuperação do lago, mas provavelmente não vamos conseguir chegar ao mesmo nível de outros anos. Espera-se que isso seja um fato periódico, historicamente não ocorrem duas estiagens”, diz o prefeito de Ilha Solteira, Bento Carlos Sgarboza.

Em 2012, o PIB (Produto Interno Bruto) do município foi de quase R$ 1,4 bilhão, mas sua participação no PIB do Estado de São Paulo foi de apenas 0,09%. As indústrias de médio e pequeno porte (incluindo a pesqueira) respondem por 74,9% do PIB municipal e a agropecuária com apenas 2,36%.

O setor de serviços contribui com 22,6% do PIB: além do turismo, o comércio é movimentado pelos mais de 3.000 estudantes instalados na cidade para frequentar os cursos da Unesp. Segundo a pesquisa “A Contribuição da Unesp para o Dinamismo Econômico dos Municípios”, realizada em 2013 por José Murari Bovo, esses alunos consumiram mais de R$ 37 milhões no município. De acordo com a Fundação Seade, Ilha Solteira despendeu R$ 22 milhões em educação e R$ 20 milhões em saúde em 2011.

Segundo a Secretaria Municipal de, houve uma redução de 70% do público esperado para o verão. Com a estiagem, a água recuou 100 metros e a cidade perdeu sua principal atração: as praias artificiais com seus quiosques e atividades aquáticas.

“O turismo está parado, você não vê um jet-ski andando, um barco andando, as marinas todas paradas, então o prejuízo para a região, cuja base da economia é o reservatório, torna-se incalculável. As lojas de pesca, manutenção para jet-ski e ranchos já estão sentindo”, aponta o biólogo e piscicultor Emerson Esteves, que reside à margem do reservatório de Ilha Solteira, na cidade de Rubineia.

O prejuízo é maior ainda para os empresários que, como ele, utilizam o reservatório da usina para a criação de tilápias em tanques-rede. Com o lago abaixo de seu nível habitual, os tanques são constantemente deslocados e em alguns pontos, a produção ficou comprometida.

“O setor aquícola emprega 3.000 pessoas diretamente e caiu 30% em 2014. Já tivemos desemprego, queda na produção, queremos nossos direitos e assegurar uma cota mínima para o reservatório”, explica Esteves, proprietário da piscicultura Peixe Vivo. Segundo o empresário, o lago é um dos mais importantes na criação de tilápias no Brasil.

Esteves conta que, depois do prejuízo causado pela barragem, os moradores que conseguiram permanecer se adaptaram, extraindo seu sustento do lago. “Quando teve o represamento, o reservatório foi um problema porque acabou com áreas de produção de alimentos. Aqui era uma grande área produtora de arroz, feijão, algodão e café. Mas com o passar dos anos o reservatório foi uma riqueza, porque a gente aprendeu a explorá-lo para o lazer, o turismo, a agricultura irrigada, a própria piscicultura. A economia da região está baseada nesse reservatório também, o que seria dessa região sem ele? Eu não consigo nem imaginar”, afirma o criador de tilápias. 

Com seca, Ilha Solteira (SP) tem prejuízo em turismo e em energia