Topo

Seca em Ilha Solteira (SP) vira batalha na Justiça

Parte interna da Usina de Ilha Solteira; a cidade paulista foi planejada em detalhes para servir à usina e hoje sofre com a diminuição da vazão de água - José Eduardo Bernardes/Agência Pública/Greenpeace
Parte interna da Usina de Ilha Solteira; a cidade paulista foi planejada em detalhes para servir à usina e hoje sofre com a diminuição da vazão de água Imagem: José Eduardo Bernardes/Agência Pública/Greenpeace

José Eduardo Bernardes e Thaís Aleixo

Da Agência Pública

12/03/2015 06h00

A estiagem de Ilha Solteira (SP) acabou se tornando centro de uma batalha judicial entre piscicultores, a Cesp e o Operador Nacional do Sistema.

Segundo os empresários, o funcionamento da usina abaixo da cota 323 metros tem prejudicado a produção de peixes porque, enquanto a vazão do rio na barragem continua alta, para garantir a geração de energia, a montante (acima da usina) fica vazia, impedindo a criação dos peixes nos tanques. Por isso o processo dos criadores acusa a Cesp e o ONS de má gestão da água.

“O que a gente pediu foi que parasse a geração de energia abaixo da cota 323 metros, que só gere energia com o que entra na usina”, explica Esteves, o principal interlocutor do movimento, que integra a ação contra o ONS e a Cesp.

Segundo ele, o processo foi impetrado “para garantir o múltiplo uso da água”. Desde 1997, a “Lei das Águas” (Lei nº 9.433/1997), que instituiu no país a “Política Nacional de Recursos Hídricos”, determina que a gestão da água garanta os usos múltiplos desse bem público (não pode ser privatizado). Ou seja, a água deve ser utilizada de forma a garantir ao mesmo tempo o abastecimento residencial e industrial, a energia e a irrigação, entre outros usos. O consumo humano e de animais, no entanto, é prioritário em situações de estiagem.

A ação proposta por diversas associações de piscicultores como a AB-Tilápia (Associação Brasileira da Indústria de Processamento de Tilápia), o Cimdespi (Consórcio Intermunicipal para o Desenvolvimento Sustentável da Piscicultura da região de Santa Fé do Sul) e a Apropesc (Associação de Piscicultores de Três Fronteiras e Região) obteve uma primeira vitória na Justiça Federal.

O juiz Rafael Andrade de Margalho, da 1ª Vara Federal de Jales, no interior de São Paulo, deferiu liminar exigindo da Cesp o fechamento da usina até que se restabelecesse a cota mínima para operação. Caso descumprisse a liminar, a companhia deveria arcar com uma multa de R$ 100 mil por dia de operação.

“Os piscicultores têm uma concessão para explorar a margem da represa com gaiolas de peixe e estavam tendo um prejuízo muito sério com essas gaiolas, que precisavam ser deslocadas muito para o meio. A água baixou mais de 300 metros de onde era a antiga margem, você já consegue ver as cidades que foram inundadas. Além disso, havia prejuízo de turismo na região e a usina estava funcionando abaixo do nível legal”, justificou Margalho.

Emerson Esteves, porém, afirma que em nenhum momento a decisão judicial foi cumprida. “Nós ganhamos, mas em nenhum momento a Cesp e o ONS cumpriram a decisão. A ANA (Agência Nacional de Águas), três, quatro dias depois, soltou uma nota informativa dizendo que poderia criar peixe até 314 metros. Baseado nisso o ONS conseguiu derrubar nossa liminar. Chegou à cota 319,23 metros. A topografia do nosso reservatório é plana e os piscicultores tiveram que parar”, conta o empresário. A denúncia do empresário foi respaldada pelo juiz. “O ONS se negou a cumprir, muito embora ainda estivesse dentro do prazo para recurso”, diz Margalho.

Por sua vez, o gerente de produção da Cesp Haruo Kuratani, afirma que a empresa apenas cumpre as determinações do ONS. “Não somos nós que definimos: vamos gerar 100 MW hoje e vamos fechar a 200 MW amanhã. Quem determina a produção de energia é o Operador Nacional do Sistema. É ele quem tem que ver onde é que está distribuindo energia, onde é que está a água, onde tem água para produzir energia.”

A liminar favorável aos piscicultores foi derrubada no Tribunal Federal, sob alegação do ONS de que “a manutenção da liminar poderia causar um apagão no país”, explica o juiz Margalho. Segundo ele, o Operador Nacional do Sistema alegou que “o impacto [de interromper a energia] seria nacional, enquanto o impacto ambiental seria apenas local. Não se discutia ali que exista dano ambiental, ele existe, mas seria mais importante a manutenção da energia”.

Uso múltiplo da água

Ex-ministro da Pesca e Aquicultura no segundo mandato do governo Lula (2006-2011), Altemir Gregolin concorda que “o reservatório é para geração de energia”.

Mas considera que o peso econômico que tem hoje a criação de tilápias tem que ser levado em conta. “O reservatório de Ilha Solteira tem mais de 20 mil toneladas de produção. Os órgãos que trabalham no sistema elétrico devem rever os critérios; aquilo que era atividade complementar passou a ser importante para a região. O ONS, a ANA, a Aneel e o Ministério da Pesca precisam rever os usos múltiplos da água e a piscicultura.”

A baixa do reservatório também prejudica diretamente a fauna local residente no lago. “[Se continuar a gerar energia] vão secar mais ainda os reservatórios, diminuir a quantidade de água e prejudicar o habitat de animais que vivem na represa, mas também tem o prejuízo financeiro, de pessoas que se utilizam do reservatório para seu próprio sustento, como o turismo”, diz a urbanista Marussia Whately, especialista em recursos hídricos.

Ela destaca que a seca “tem a ver com a estiagem, mas também, aliada à questão climática, está a questão da degradação das represas; as margens estão desmatadas, vulneráveis a eventos extremos como esse, não há proteção dos corpos de água. É um problema da gestão, que está olhando sempre para o modelo da oferta, aumentando a quantidade da energia que produz, sem olhar para o que é preciso preservar”, diz.

Depois de a liminar ser derrubada, abriu-se uma ação civil pública (em defesa de interesses coletivos) encabeçada pelo Ministério Público de Jales. Na opinião do procurador José Rubens Plates, responsável atual pelo processo, a decisão do Operador Nacional do Sistema viola a legislação vigente sobre o uso das águas.

“Do nosso ponto de vista e também do juiz federal que decidiu a liminar, isso contraria a legislação, que fala que em época de seca, de escassez de água, deve-se priorizar o consumo humano e a dessedentação animal, em detrimento de outros usos de água. Do nosso ponto de vista, a Cesp e o ONS estariam priorizando somente a produção de energia. Então é uma ponderação de interesse, uma ponderação de valores utilizados nesse caso”, diz o procurador.

Em nota, o ONS afirma que o “gerenciamento para flexibilizar as restrições de uso múltiplo da água estocada nos reservatórios em decorrência da escassez de recursos hidroenergéticos tem sido realizado com a participação da ANA, do Ministério do Meio Ambiente, da Aneel, do Ministério de Minas e Energia e dos agentes proprietários das instalações envolvidas”.

O Operador Nacional do Sistema declarou ainda que “face à escassez de recursos hídricos, tem sido necessário flexibilizar as restrições de uso múltiplo. Em condições normais, essas restrições sempre foram respeitadas pelo setor elétrico”.

Artificial como o lago

 

O município de Ilha Solteira foi fundado em 1991, quando alcançou a independência de Pereira Barreto – a cidade integrava o Aglomerado Rural do Distrito de Bela Floresta. Nos anos 2000, ganhou o status de Estância Turística do Estado de São Paulo. A cidade ocupa o 18º lugar no ranking de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de municípios do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

Segundo dados divulgados em 2013 pelo órgão, os moradores dispõem de 74 leitos do SUS (Sistema Único de Saúde) e 8 Unidades Básicas de Saúde. São, ao todo, 47 médicos registrados no município pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, uma média de 1,86 médicos para cada mil habitantes.

A cidade foi planejada em detalhes para servir à usina. Ao contrário da Usina Hidrelétrica de Jupiá, onde os trabalhadores se instalaram em uma vila conhecida como Vila Piloto, transformada em bairro após a construção da usina, em Ilha Solteira, o projeto previa a edificação de unidades habitacionais permanentes. A ideia dos administradores da vila, a estatal Cesp, era estimular atividades industriais e agrícolas na região, perpetuando sua existência.

A partir de 1968, a vila recebeu de engenheiros a operários. À época, não existia policiamento na região e a segurança era feita por funcionários da Cesp. Relatos dão conta de que agentes da ditadura militar perambulavam pela região prendendo profissionais que descumprissem regras, como ingerir álcool. Para “manter a ordem”, a cidade foi dividida em níveis “sócio-profissionais”: 1 e 2 (operários não especializados, ajudantes, serventes, vigias, zeladores, carpinteiros, encanadores, pedreiros); 3 e 4 (auxiliares administrativos, chefes de turma, encarregados, mestres de obra, fiscais, desenhistas, projetistas e professores de ensino primário); 5 e 6 (técnico-administrativo, cargos de chefia, professores de ensino técnico e ensino médio, encarregados de nível universitário, médicos, engenheiros, arquitetos, economistas e assistentes sociais).

Os níveis dividiam geograficamente os trabalhadores (na zona sul, os funcionários de hierarquia superior, no norte da cidade os menos abastados). Cada segmento social tinha seu próprio clube, com atividades culturais específicas, e nas escolas só estudavam filhos de trabalhadores de níveis semelhantes.

Shows de grandes artistas nacionais (Wilson Simonal, Raul Seixas, entre outros), bancados pelos administradores da cidade, eram realizados nos clubes de nível 5 e 6. Exigências de vestimenta e altos preços vetavam a entrada de famílias residentes das áreas 1 e 2 nestes clubes.

“Os que eram mais fracos tinham muito pouca assistência deles [Cesp], sofriam muito. Agora os engenheiros, encarregados, as casas deles davam umas cinco dessas. Quando terminou a barragem, a Cesp botou as casas à venda, mas quem já estava aqui não ia deixar de comprar”, lembra Gildete Adelina, mulher do barrageiro – como se definem os trabalhadores das barragens – João Félix da Cruz, que ingressou na companhia como funcionário de nível 1, posteriormente alçado ao nível 3.

“O conflito social, queira ou não queira, existia”, conta o engenheiro aposentado da Cesp Rubens Dobre, que hoje trabalha na associação de aposentados da companhia. “No começo, era muito difícil porque existiam níveis diferentes e graças a Deus isso foi acabando. Além das diferenças das pessoas, a cidade era um grande acampamento e nós só tínhamos segurança própria. Hoje Ilha Solteira é uma cidade normal, comum, como todas as outras”, diz.

Mas essa história acabou determinando o futuro da vila, hoje uma cidade com contornos de violão e casas distribuídas em ruas que carregam nomes de municípios brasileiros agrupadas por Estado para facilitar a orientação de quem circula por ali.

Não que os seus 25.400 habitantes não conheçam cada “lombofaixa” (lombada com faixa de pedestres, respeitada rigorosamente por veículos) e cada esquina de cor e salteado. Sua população está majoritariamente instalada na parte urbana da cidade. Apenas 1.565 ilhenses residem na área rural.

Em seu livro sobre a história da emancipação ilhense (“Ilha Solteira - Um Sonho, uma História”), o jornalista Fernando Sávio observa: “A diferença de padrão de vida entre os moradores das casas tipos 1 e 6 é acentuada […]. O problema é que os tipos foram concentrados geograficamente, estabelecendo um sistema que parece responder a uma estrutura estamental, na medida em que uma família cujo chefe pertence a determinado nível funcional não pode morar numa casa atribuída a outro nível, mais alto. A estrutura estabelecida […] contribuiu para o florescimento de preconceitos de vários tipos entre os habitantes”.

A usina foi construída com o sacrifício dos barrageiros, que trabalhavam em turnos dobrados sujeitos a acidentes – a construção não utilizava procedimentos estipulados pela Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes). Profissionais que participaram das obras relatam um número expressivo de mortos e desaparecidos. “Hoje tem a Cipa, que é uma grande garantia para o trabalhador. No nosso tempo não tinha, era na foice mesmo, tinha que fazer e não tinha segurança nenhuma. E nem podia ter, porque, se tivesse, não saía nada. Quantas pessoas morreram? Aqui até foi pouco, em Jupiá foi mais”, lembra João Alves de Souza, barrageiro aposentado que ajudou na parte elétrica da Usina de Ilha Solteira.

“Teve muita morte, vinha uma turma do Norte, que não tinha parente. Aqueles que morriam, que não tinham parentes, eles enterravam, descartavam e ficavam as malas, as coisas. Quando foi o término das obras, que eles estavam fazendo a limpeza, dizem que saíram dois caminhões de malas do povo que morreu”, afirma Gildete Adelina, que já lavou roupas para os barrageiros e depois improvisou, em sua casa, um restaurante para os trabalhadores.

Agora a prosperidade construída à custa de repressão e sofrimento dos trabalhadores está novamente em risco. Se Ilha Solteira pode sobreviver sem a arrecadação de ICMS com a energia vendida, a perspectiva da falta de água na cidade criada em função de uma barragem surge como um pesadelo para os seus moradores.

 

Entre a água, a energia e o efeito estufa

“Se continuar essa seca, e as indicações são de que a seca vai continuar, vão se acentuar esses conflitos de geração de energia e usos múltiplos. Quando há pouca água, a geração de energia conflita com a navegação, a recreação, a produção de peixe, a pesca, a aquicultura”, afirma o presidente do Instituto Internacional de Ecologia de São Carlos, professor José Galizia Tundisi, que participou de estudos sobre mais de 50 reservatórios brasileiros nos anos de 1970, inclusive o reservatório de Ilha Solteira.

“A qualidade da água sofre muito com a diminuição do volume. Isso pode matar peixes, pode comprometer a produção de tanques rede e a pesca artesanal, por diminuir a quantidade de oxigênio”, explica.

Na época em que o sistema elétrico brasileiro foi implantado, as exigências ambientais não eram tão rigorosas e o uso múltiplo das águas não era a prioridade dos projetos. Segundo o presidente da ANA (Agência Nacional de Águas), Vicente Andreu Guillo, “há uma preponderância natural histórica do uso energético, sem levar em consideração as atividades que foram incorporadas ao reservatório”.

“Muitas vezes há uma ausência de regras claras, porque confrontamos o novo e o antigo praticamente ao mesmo tempo”, diz ele. “O antigo é a instalação do sistema elétrico brasileiro. Os reservatórios de usinas como Ilha Solteira foram construídos em um período onde as condições gerais de funcionamento não eram tão exigentes como agora. Nós não temos uma outorga para a usina de Ilha Solteira, como a maioria das usinas não têm. E, com o passar dos anos, foram sendo constituídas novas atividades econômicas, que não foram incorporadas no funcionamento do sistema elétrico brasileiro, compatíveis com o uso múltiplo das águas”, explica.

Para o ex-secretário de Energia do Estado Marco Antônio Mroz, não há dúvida que a operação da usina abaixo de seu volume útil “oferece riscos ambientais”.

Para ele, o que tem prejudicado o uso eficiente das águas é a falta de comunicação e planejamento de todas as esferas governamentais. “Acho que a gente tem que avaliar o uso múltiplo da água em todas as suas faces. Como a Constituição diz, a água é predominantemente para o consumo humano, a primeira coisa que deve ser preservada. A ANA já deveria ter arbitrado essa questão, não é possível que os entes, o Estado e a Federação não conversem a esse respeito. Há que se ter uma determinação, todos os usos têm que ser respeitados para a indústria, para a agricultura, para o consumo humano”, diz o ex-secretário.

Apesar de não ter se manifestado durante as negociações, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) afirma ter alertado o ONS sobre os riscos de continuar a gerar energia em Ilha Solteira. “Nós tínhamos pedido para manter o nível de Ilha Solteira mais elevado. Se tivesse mantido mais elevado, prejudicaria menos a piscicultura e manteria o Canal de Pereira Barreto, a Hidrovia Tietê-Paraná. Mas infelizmente o Operador Nacional do Sistema não concordou e é ele que controla a questão dos reservatórios das hidrelétricas”, afirmou Alckmin em entrevista à reportagem.

O governador, porém, não apontou alternativas para substituir a energia de Ilha Solteira.

De acordo com o gerente da Cesp Haruo Kuratani, a falta de energia gerada na usina afetaria todo o sistema elétrico brasileiro. “Acho que não é prejudicial para a usina, é para a sociedade. Nesse primeiro momento, se eu diminuir a geração desta bacia, eu vou gerar menos energia. Se eu gerar menos energia, alguém vai ter que gerar, de alguma outra forma, ou então vai faltar”, diz Kuratani.

Por enquanto a insuficiência da energia hidrelétrica tem sido suprida pelas usinas termelétricas, que funcionam a partir da queima de combustíveis fósseis, onerando as contas de energia e contribuindo para a emissão de gás carbônico na atmosfera. No primeiro mês de 2015, 123 termelétricas instaladas nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Norte e Nordeste funcionaram de maneira ininterrupta e em sua capacidade máxima, de acordo com os dados do “Programa Mensal de Operação Eletroenergética” do ONS. As termelétricas representam cerca de 23% da capacidade energética do país.