Arrastão, pânico e revolta: como a praia de domingo virou pesadelo no Rio
Arrastões como os que deixaram em pânico frequentadores de praias do Rio de Janeiro no último fim de semana não são um fenômeno recente. Roubos praticados em grupo e em série são registrados na capital fluminense desde o início da década de 1990. Entender como uma simples ida à praia virou um pesadelo em potencial na Cidade Maravilhosa, no entanto, é um desafio até mesmo para especialistas em segurança pública. Isso porque as diversas raízes do problema dificultam tanto sua plena compreensão quanto a aplicação de soluções eficazes.
Para a socióloga Lia de Mattos Rocha, do Laboratório de Análise da Violência da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), o "cobertor curto" da segurança pública no Rio é um dos fatores que ajuda a explicar o cenário. "Quando se investe muito em um lugar, algum outro fica sem cuidado", explica.
Os arrastões são praticados por jovens que se deslocam, em sua maioria, de bairros da zona norte, pouco atendidos pelo poder público, para a orla da zona sul, a região mais turística e valorizada da cidade. Indignados com o cenário de insegurança, moradores da zona sul se reuniram neste fim de semana para reagir por conta própria, agredindo os adolescentes, reeditando ações dos chamados "pitboys" que eram comuns na década retrasada.
Nas áreas de origem dos protagonistas dos arrastões, aponta a pesquisadora, eles se acostumam desde cedo a ser reprimidos pela Polícia Militar. Desde o início deste ano, a ida deles às praias da zona sul da cidade em fins de semana de sol passou a ser interrompida no meio do caminho por operações da PM. Nas blitzes, os ônibus que levavam os jovens da periferia eram parados durante o trajeto. Muitas vezes, eles foram impedidos de seguir viagem, ainda que não tivessem cometido crimes. Em um só dia, em agosto, 150 adolescentes foram apreendidos. "Isso gera revolta", disse Lia.
Questionado pela Defensoria Pública do Rio, este tipo de ação foi proibido pela Justiça no último dia 10, o que gerou reclamações do secretário de Segurança do Estado, José Mariano Beltrame. Nesta segunda (21), em resposta aos novos arrastões, ele atribuiu as ações à restrição ao trabalho dos policiais e disse que as abordagens voltarão a ser realizadas. O secretário afirmou ainda que as ações vinham "dando resultados positivos" e reclamou a polícia está sendo "constrangida".
"Quando o secretário diz que a polícia está impedida de trabalhar por conta da decisão judicial, o que ele sinaliza é um pedido de autorização para agir ao arrepio da lei", analisou Lia Rocha. De acordo com a socióloga, o tipo de delinquência praticado pelos jovens pode ser visto como o resultado de "um certo asfixiamento dessas populações diante da repressão".
A educadora Eliana Sousa Silva, diretora da ONG Redes da Maré, classificou como "lamentáveis" tanto os arrastões quanto a resposta do poder público. "A polícia acaba demonstrando todo um preconceito em relação a determinados segmentos da sociedade. Apenas pessoas negras, homens, são diretamente atingidas. A resposta dada pela PM não enfrenta o problema real", argumentou.
Beltrame justificou as medidas da polícia dizendo que não se trata de racismo, mas, sim, de vulnerabilidade. "Como é que um jovem sai de Nova Iguaçu, a 30 km de distância da praia, sem dinheiro para comer, para beber, para pagar a passagem, só com uma bermuda?", declarou.
"Todas as pessoas têm direito à cidade, pobres e ricos. É um absurdo você usar como critério para determinar se uma pessoa vai cometer um crime o fato de ela estar ou não com dinheiro no bolso. É um descalabro que demonstra a falta de entendimento do Estado sobre as questões mais profundas que levam a essa violência", respondeu Eliana.
Linhas de ônibus
Divulgada pela Prefeitura do Rio como uma racionalização das linhas para evitar o acúmulo de ônibus vazios nas ruas, a alteração de trajetos de coletivos na cidade a partir de outubro tem sido encarada com desconfiança por moradores da zona norte carioca. Acredita-se que os itinerários entre os subúrbios e a zona sul foram modificados para dificultar o acesso de jovens pobres à orla de Copacabana, Ipanema e Leblon. Das 48 linhas, entre encurtadas e extintas, 18 faziam o trajeto até as praias.
Para Lia Rocha, as mudanças são "segregacionistas", assim como a reação de parte da população a essas iniciativas. "Há muito preconceito, muita estigmatização e muita violência. E isso preocupa bastante", afirmou. "A atual onda de arrastões não está solta no ar. Desde o começo do ano está se falando sobre possíveis formas de segregação", completou.
A iniciativa da prefeitura foi recebida positivamente por uma parcela dos moradores da zona sul. Criada no Facebook na semana passada, a página "Linha 474 - O inferno do Rio" já reúne centenas de pessoas que pedem o fim do itinerário de ônibus que liga o Jacaré, na zona norte, ao Leblon, na zona sul. A descrição da página afirma que a linha "aterroriza a zona sul da cidade maravilhosa com pessoas que vão a praia com o intuito de apenas criar baderna e desordem na cidade".
"Isso se baseia na ideia de que não é possível garantir os direitos humanos para todos. Para garantir a segurança de uns, se negam direitos humanos para outros. A gente já teve muito isso no Rio de Janeiro, com muitas chacinas, por exemplo", declarou Rocha.
As reações aos arrastões do fim de semana dão mostras de que o problema não tem solução simples e ainda pode piorar. Nas redes sociais, há diversas manifestações de incitação à violência, tanto de moradores dos locais afetados quanto de jovens que afirmam ter sido agredidos pelos chamados "justiceiros" após as ações. Um evento do Facebook convoca pessoas a aparecerem no próximo fim de semana na praça General Osório, em Ipanema, com tacos de beisebol e porretes.
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