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Investigando estupro coletivo, delegada esqueceu do próprio aniversário

Cristiana indiciou sete pessoas por crimes como estupro de vulnerável e produção e divulgação de imagens referentes ao ato - Júlio César Guimarães/UOL
Cristiana indiciou sete pessoas por crimes como estupro de vulnerável e produção e divulgação de imagens referentes ao ato Imagem: Júlio César Guimarães/UOL

Paula Bianchi

Do UOL, no Rio

01/07/2016 06h00

Menos de 12 horas depois de assumir as investigações do estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro, caso que chocou o país e levou multidões de mulheres às ruas em protesto, a delegada Cristiana Bento, titular da DCAV (Delegacia da Criança e Adolescente Vítima) pediu a prisão de seis suspeitos e afirmou que não havia dúvidas sobre o crime. Foi de encontro à posição do até então responsável pelo caso, Alessandro Thiers, titular da DRCI (Delegação de Repressão aos Crimes de Informação), afastado depois de colocar em dúvida a versão da vítima.

Na delegacia, chefia uma equipe de cerca de 30 pessoas. Recebe ao menos três casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes por dia. Durante as investigações, esqueceu de comer e até do próprio aniversário, emagrecendo quatro quilos. Inquérito encerrado, indiciou sete pessoas por crimes como estupro de vulnerável e produção e divulgação de imagens referentes ao ato, trazendo à tona a discussão sobre a cultura do estupro e os seus efeitos.

“Se a gente pode levar alguma coisa boa disso é a discussão sobre essa cultura do estupro, a visibilidade da lei informando que é crime. Não importa a personalidade da vida, o que ela estava fazendo, que roupa ela estava usando. Se ela não pode oferecer resistência e o ato for comprovado é crime, é estupro e é crime hediondo”, afirma a delegada, ainda surpresa com a repercussão que a história, descoberta depois que um vídeo com os agressores estuprando a vítima foi postado na internet. 

Na gravação, um grupo de homens, em meio a risadas, toca nas partes íntimas da garota e diz que ela foi violentada por "mais de 30". Mãe de uma adolescente de 14 anos ela questiona àqueles que culparam a vítima e sua relação com os acusados. “Ela foi muito julgada. Ela é uma menina de 16 anos. Uma menina de 16 anos que com 12 anos engravidou. Ela já foi vítima de estupro aos 12, estava viciada em drogas.”

A sociedade tinha que abraçar e cuidar dessa menina, não apontar, xingar.

Cristiana evita falar da conduta do delegado anterior e diz que debateu com diversos colegas que também não viam crime no primeiro vídeo – uma segunda gravação, recuperada do celular de um dos suspeitos, ajudou a encerrar o caso. “O que mudou foi a condução. Começamos a ouvir todo mundo”, afirma.

A princípio a adolescente, que chegou a voltar ao local do crime para recuperar seu celular, não denunciou o caso, indo até a polícia depois que a gravação se tornou viral nas redes sociais. “Ela achou que era do jogo. Estava ali, no tráfico, no meio deles, por conta da droga, achou que era assim mesmo, ‘nada vai mudar e eu tenho que me sujeitar’.” Cristiana comemora a mudança de posição da jovem, hoje integrada ao programa de proteção a testemunhas. “Caiu a ficha dela. Ela percebeu, ‘poxa, não tenho que me sujeitar a isso. Tenho que falar.'”

Tivemos umas conversas no Whatsapp e ela me disse, 'foi estupro mesmo, eu estava desacordada'.

Ponta do iceberg

Mas se engana quem pensa que o caso da adolescente é uma exceção em seu cotidiano. Um mês antes, lembra Cristiana, ela atendeu outra menina de 13 anos, também vítima de estupro coletivo, também na zona oeste da cidade. A diferença desta vez é que não eram traficantes, mas milicianos, os responsáveis pelo crime. “A gente só conhece a ponta do iceberg, a quantidade de casos é imensa. Às vezes a gente descobre fortuitamente”, afirma.

Cristiana já era conhecida por ter revelado uma rede de pedofilia. Prendeu uma professora que abusava de crianças na creche onde trabalhava e levava-as para um advogado. À frente da Delegacia de Atendimento à Mulher em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e depois em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, priorizava as investigações dos crimes sexuais, mantendo o mesmo padrão na DCAV, onde está há um ano. 

O estupro, lembra Cristiana, é um dos crimes mais subnotificados – um estudo realizado pelo Instituto de Segurança Pública mostrou ao menos uma mulher sofreu um estupro ou uma tentativa de estupro a cada duas horas no Estado em 2015. “É um crime que a gente não tem a real dimensão. Quando faço palestras em escolas vejo crianças, adolescentes, que se emocionam, se identificam, e eu penso, ‘essa menina foi abusada’. E ela não fala”, diz. 

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