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Arquiteto reúne histórias de cidades abandonadas: 'Só sobram o cemitério e a igreja'

Biribiri (MG) nasceu de uma extinta fábrica de tecidos no final do século 19; apenas quatro moradores ficaram e hoje é uma atração turística - Marcelo Lessa
Biribiri (MG) nasceu de uma extinta fábrica de tecidos no final do século 19; apenas quatro moradores ficaram e hoje é uma atração turística Imagem: Marcelo Lessa

Carolina Cunha

Colaboração para o UOL, em São Paulo

10/01/2017 04h00

As casas de Ararapira (PR) estão sendo lentamente engolidas pelo mar. Em Fordlândia (PA), as estruturas de piscinas, hotéis e uma serralheria desaparecem em meio à selva amazônica. Em Biribiri (MG), uma família passou anos tentando achar um comprador que desembolsasse US$ 1 milhão para adquirir uma vila histórica inteira. Na pacata Airão Velho (AM), cipós e árvores crescem sobre os escombros do século 18. 

Todas essas são histórias de cidades fantasmas brasileiras, mapeadas pelo arquiteto e urbanista Nestor Razente em seu livro “Povoações Abandonadas no Brasil”. Na obra, o professor da Universidade de Londrina (PR) faz um levantamento inédito sobre oito cidades brasileiras que deixaram de existir entre os séculos 19 e 20.

Para o pesquisador, uma cidade passa a ser considerada fantasma quando não há registro de moradores ou há no máximo uma família. Mas a classificação não tem nada de sobrenatural. "Em vez de 'cidade fantasma', prefiro usar o termo 'povoação abandonada' para traduzir o fenômeno do desaparecimento da população.”  

O que leva as pessoas a deixar esses locais? Segundo Razente, essa pergunta foi o ponto de partida para a pesquisa. “Num mundo cada vez mais urbanizado, como é possível existir uma cidade abandonada? Pesquisamos cidades brasileiras que desapareceram nos últimos dois séculos. Elas sumiram enquanto havia um fenômeno de urbanização acelerada.” 

Esse processo histórico ainda é pouco estudado no Brasil. Enquanto no Brasil existem oito municípios fantasmas catalogados oficialmente, nos Estados Unidos os registros apontam para a existência de aproximadamente 900 cidades e vilas que desapareceram. 

O declínio econômico é o motivo mais comum. É o caso das cidades do Amazonas que viveram seu auge durante o Ciclo da Borracha (de 1879 a 1912) e daquelas que surgiram com o Ciclo do Ouro, fundadas por bandeirantes no interior do Brasil durante o século 18. 

Airão Velho, no Amazonas, foi abandonada por seus habitantes na década de 1950. Lendas contam que a fuga dos moradores ocorreu depois do ataque de formigas de fogo ou que teriam sido assombrados por fantasmas de índios escravizados.

A verdade é que o vilarejo viveu um período de prosperidade com a exploração do látex. “Quando a borracha sumiu, a cidade foi desaparecendo”, explica o professor. Hoje o local possui um único morador, o imigrante japonês Shigeru Nakayama, que desde 2001 vive sozinho nessas terras. O guardião do local costuma cavar o chão em busca de velhos objetos, a partir dos quais montou um pequeno museu. 

Fordlândia - Alex Albino - Alex Albino
Fordlândia (PA) fracassou devido às condições inadequadas do plantio das seringueiras
Imagem: Alex Albino

A borracha também foi responsável pelo surgimento de Fordlândia, cidade norte-americana no meio da Amazônia. A vila foi criada no Pará em 1928 pelo empresário norte-americano Henry Ford, fundador da Ford Motor Company. Ele queria erguer uma fábrica de látex para abastecer a indústria automotiva e não mais depender da Inglaterra. Ford gastou milhões de dólares para projetar uma cidade típica americana com chalés de madeira, hospitais, cinema e até campos de golfe.

O empreendimento fracassou devido às condições inadequadas do plantio das seringueiras. Até que mais tarde, o mercado deu lugar à borracha sintética. Em 1950, após a falência da indústria, os moradores tiveram que abandonar o local, que foi incorporado ao município de Aveiro. Hoje as estruturas de Fordlândia estão cobertas pelo mato.

Desemboque (MG) surgiu como caminho de entrada para bandeirantes que buscavam ouro em Goiás. O vilarejo foi fundado em 1743, na encosta da serra da Canastra. Durante o século 18, ele se tornou o maior centro comercial e de mineração do Triângulo Mineiro.

Nos dias de glória, o local chegou a ter 1.500 habitantes. Tudo foi abandonado quando as minas de ouro acabaram. Os moradores migraram principalmente para a promissora Uberaba, cidade vizinha. “Uberaba lhe roubou os filhos e o comércio”, diz o professor. 

O arraial de Ouro Fino, em Goiás, também foi fundado por bandeirantes à procura de metais preciosos. Ele foi imortalizado na música “Chico Mineiro”, da dupla Tonico e Tinoco. A letra conta a história de um boiadeiro que foi assassinado durante uma Festa do Divino Espírito Santo. As festas religiosas, como a Folia de Reis, eram famosas em Ouro Fino.

Hoje fazem parte de um passado distante. Da antiga Igreja de Nossa Senhora do Pilar, restam apenas algumas paredes, feitas em taipa de pilão e que correm o risco de se deteriorar com as chuvas.

Patrimônio e descaso

Embora algumas das cidades pesquisadas sejam tombadas como patrimônio histórico, a situação predominante é de descaso e abandono do poder público. “Em Airão Velho me mostraram uma bala de canhão e disseram que a Marinha brasileira usava as paredes da vila abandonada como alvo para tiros. O local é testemunha de um período importante da colonização portuguesa e do Ciclo da Borracha. Destruíram bastante a casa comercial principal. Praticamente tudo veio ao chão”, lamenta Razente.

Nem sempre o abandono se transforma em ruínas. Em alguns casos, a cidade está renascendo pelo turismo. É o caso de Biribiri. Nascida de uma extinta fábrica de tecidos no final do século 19, a cidadezinha do Vale do Jequitinhonha chegou a ter 1.200 habitantes. Em 1973, a empresa não resistiu ao alto custo da produção e fechou as portas. A família Mascarenhas, dona da fábrica, preservou o casario e as cores azul e branco das fachadas. Residências de operários, escola, barbearia, o galpão da fábrica e a igreja do Sagrado Coração de Jesus se mantêm intactos, tombados como patrimônio histórico.

Os herdeiros já tentaram arrendar a vila inteira. Teve até anúncio nos classificados de jornais, mas ninguém quis comprar o terreno milionário. Os imóveis foram vendidos separadamente e, com o tempo, Biribiri começou a atrair turistas em busca de um refúgio bucólico. Hoje o local tem pousada, restaurante e aguarda a construção de um museu, um hotel e uma vinícola. 

Também viraram ponto turístico as casinhas vazias de Ararapira, no litoral do Paraná. O acesso é feito somente por barco. No passado, o local foi um próspero entreposto comercial. A construção de um canal para dar acesso ao porto de Paranaguá, nos anos 1950, mudou definitivamente o nível da água do mar, afetando a pesca e alagando casas.

Arquiteto - Divulgação - Divulgação
O urbanista Nestor Razente lança livro sobre as cidades abandonadas
Imagem: Divulgação
Para completar o processo, a criação do Parque Nacional do Superagui transformou a região numa área de proteção ambiental e impediu qualquer atividade produtiva. A igreja de São José, construída no fim do século 19, ainda conserva os bancos de madeira e as imagens no altar. Mas, se a água subir ainda mais, tudo pode desaparecer. 

A pesquisa do arquiteto revelou uma curiosidade presente em praticamente todas as cidades pesquisadas. “A igreja e o cemitério foram as únicas construções que resistiram ao tempo e à depredação”, diz Razente. 

O que sobrou foi aquilo que é considerado sagrado. A força da crença religiosa e o respeito aos mortos são capazes de perpetuar a inquietude diante das ruínas

Nestor Razente, autor de livro

O cemitério de Ararapira ainda se encontra em funcionamento, sendo visitado pelos ex-moradores no Dia de Finados. Nessa data, os túmulos costumam ser limpos e recebem flores. Muitos fazem questão de serem sepultados onde nasceram. Em Cococi (CE), a tradição da novena religiosa dedicada a Nossa Senhora da Conceição, padroeira do ex-município, continua firme. A romaria atrai centenas de moradores de comunidades próximas, que lotam uma igreja construída em 1778.

No sertão do Inhamuns, a 400 km de Fortaleza, ficam as ruínas de Cococi. Em meio à paisagem de pedras e espinhos da caatinga, restam a igrejinha, o cemitério, a sede da prefeitura e o palacete da família Feitosa, oligarquia da região. Seu abandono aconteceu na década de 1960.

O problema foi político. Uma denúncia ao governo federal levou o prefeito para a Justiça. Segundo o inquérito, todos os moradores trabalhavam para os Feitosa e os políticos também pertenciam à numerosa família. O governo entendeu que ali funcionava uma fazenda que se passava por cidade. A verba pública foi cortada, e o falso município, extinto. Revoltado, o prefeito se mudou para a cidade vizinha, convenceu os moradores a irem com ele e conseguiu se reeleger. Hoje apenas duas famílias de agricultores vivem na área, que pertence ao município de Parambu. 

Para o arquiteto, o abandono dessas cidades foi uma questão de sobrevivência. Mas ele lamenta que, quando uma povoação suma do mapa, suas histórias também desapareçam. “Mesmo eu não sendo um morador, o abandono abate a gente e começo a ter saudades do que não vivi. Até onde conseguimos explicar como tudo veio abaixo? Quantas riquezas foram produzidas, a ruína econômica de alguns, a escravatura de outros. No entanto tudo voltou a ser nada ou se transformou em natureza, que reclama seu lugar de volta.”