Transexuais lançam calendário de fotos em campanha por vagas de trabalho
As 12 pessoas que aparecem nas fotos querem a chance de um dia trabalhar com aquilo que sonham fazer. As imagens formam um calendário, que será lançado neste mês como um alerta: a população transexual também precisa de emprego.
Cada mês representará um desejo profissional: ser um tatuador, uma diva das artes cênicas, um assistente social. Os personagens da campanha K-Lendárias são quatro travestis, quatro mulheres trans e quatro homens trans.
O sergipano Gil Santos, 43, é um dos participantes. Morador de São Paulo desde a adolescência, ele não consegue um emprego formal, com carteira assinada, desde 2005. Vai contando com os bicos que surgem para se manter.
A barreira do preconceito
“Já passei por várias situações de a pessoa falar ‘volta depois, depois a gente liga’, mas nunca entrar em contato. Por eu ser trans, não pela qualificação”, diz ele, sobre as tentativas de ser empregado. “Eu sou contra cotas, mas, se a gente não tem outra saída, acho que a gente pode começar daí. Enquanto a sociedade não aceitar a gente como a gente é.”
A atriz paulistana Maura Ferreira, 52, também topou fazer parte da campanha. Trabalhando no teatro desde os 18 anos, ela construiu uma carreira consolidada, mas como ‘Mauro’. Foi uma surpresa para ela a reação negativa dos colegas de profissão quando decidiu assumir o gênero com o qual se identificava.
“Foram muitos anos trabalhando como ‘menino’. Comecei minha transição [para mulher trans] aos 46 anos. Eu perdi todos os meus contatos num meio que é dito como liberal, eu fui barrada. Os diretores me viraram as costas, as produtoras deixaram de me chamar para os testes, eu passei a ser mal vista”, afirma.
Só recentemente a atriz pôde recomeçar, com a proposta de participar de um curta-metragem no papel de uma mãe.
“Passei anos sonhando em fazer um personagem feminino, mas achava impossível, pensava que sempre iam me dar papel de trans, de travesti, de drag queen”, ela diz sobre a oportunidade recente para o cinema. “Muitas pessoas estão começando a aceitar as diferenças, as diversidades sexuais, mas tem muita gente que só aceita por educação, para não ficar chato.”
Tanto Maura como Gil elegem o preconceito --conhecido como transfobia-- como a principal barreira à inclusão da população trans no mercado de trabalho.
A gente tem muita capacidade de trabalhar. Não é uma questão de gênero, mas de competência
Gil Santos, homem trans que participa do K-Lendárias
A maioria se queixa da impossibilidade de se sustentar e de investir na própria qualificação, de acordo com Renata Peron, presidente da associação Cais (Centro de Apoio e Inclusão Social de Travestis e Transexuais), que organiza a campanha.
“As pessoas trans são segregadas ao extremo, porque são negligenciadas pelos pais, pelo Estado, pela religião. São raríssimas exceções as que estudam, as que batalham, muitas não aguentam, porque é muito difícil [conseguir uma chance]”, diz.
A ONG pretende distribuir os calendários da campanha especialmente para empresários e outros potenciais geradores de emprego, para tentar movimentar uma discussão sobre a falta de vagas para trans. As fotografias também serão aproveitadas em uma exposição em local público e em um documentário gravado durante as sessões de foto. O lançamento está marcado para 29 de janeiro, na Galeria Olido (região central de São Paulo).
Por preconceito, a sociedade acaba jogando no lixo grandes oportunidades que essas pessoas poderiam ter
Maura Ferreira, mulher trans que faz parte da campanha
A Cais realizou um financiamento coletivo para captar R$ 30 mil, mas só arrecadou R$ 1.500, com ajuda de 29 doadores. Como a maior parte do dinheiro seria usada na impressão dos calendários, eles terão quantidade e formato reduzidos, em relação à ideia inicial.
“Não acredito que seja exclusivamente pela atual conjuntura política, acredito que isso é preconceito das pessoas em não querer aceitar as diferenças de maneira natural”, afirma Renata.
Assistente social e diva
No calendário, Gil posa para o mês de maio como se fosse um assistente social, um sonho que ele não sabe quando poderá concretizar.
“Tive dificuldade para estudar. Venho de uma família muito humilde [em Sergipe], vim para São Paulo com 15 anos, então eu tinha que escolher entre estudar ou trabalhar. Na época, eu trabalhava em casa de famílias [antes da transição para o gênero masculino], e os patrões não deixavam trabalhar e estudar ao mesmo tempo”, diz.
Maura está no mês de setembro, vestida como a atriz norte-americana Elizabeth Taylor.
“Embora eu seja filha de uma ex-vedete de teatro de revista, eu não sou uma trans glamourosa, eu sou mesmo uma operária de teatro e de cinema. No K-Lendárias, eu represento Elizabeth Taylor porque ela foi a rainha do cinema. Eu quis mostrar no calendário que uma trans pode sonhar. Tudo é possível. A gente não pode virar o rosto para ninguém.”
Portas fechadas
A população trans é associada, com frequência, ao pesado estereótipo da prostituição e do tráfico de drogas. O ganha-pão na rua acaba se transformando na única possibilidade de obter algum dinheiro. Justamente por isso o lema da campanha é “Quero Dignidade e Emprego”.
“Enquanto as pessoas respeitarem a gente apenas por educação, nós vamos continuar no limbo”, diz Maura.
“Falta olharem para a gente como um trabalhador qualquer, que produz da mesma forma que pessoas cis-gêneras, heterossexuais. Nós não somos diferentes de outras pessoas”, afirma Gil.
Não só a falta de trabalho como também a dificuldade de manter-se empregado é um desafio recorrente, na avaliação de Carlos Magno Fonseca, presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais).
“Enquanto gays e lésbicas têm postos específicos, travestis e pessoas trans nem sequer entram no mercado formal de trabalho”, ele diz.
A ABGLT não tem estatísticas sobre a porcentagem da população trans brasileira afetada pelo desemprego. Fonseca explica que é difícil constatar em números o impacto produzido pela rejeição, mas que ela existe para a maioria.
“O efeito disso é a precarização e a exclusão total [da sociedade], pois o trabalho é a base para a sobrevivência. Quando essa base é atingida, nada pode dar certo”, ele conclui.
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