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Desemprego faz engenheiro cortar judô, perua escolar e faxineira

O engenheiro Chrystian Guimarães, sua mulher e os dois filhos - Fernando Moraes/UOL
O engenheiro Chrystian Guimarães, sua mulher e os dois filhos Imagem: Fernando Moraes/UOL

Guilherme Azevedo

Do UOL, em São Paulo

20/03/2017 04h00

O engenheiro civil Chrystian Guimarães, 43, comanda a preparação da mistura. Não é cimento, areia, pedra e água, para formar o concreto, base de toda obra. Não há serventes, carpinteiros, armadores, mestres de obras para auxiliá-lo. Não está no canteiro de obras, lugar de engenheiro. Não veste calças de brim. Não calça botas de couro reforçado nem usa o capacete branco, a cor do engenheiro no campo.

Ele está de avental na cozinha de sua casa, e os ingredientes que manuseia com habilidade no início desta manhã são farinha de trigo, leite e ovos, os "insumos" de sua obra particular: uma receita de panquecas americanas, a predileta de seus "clientes" em casa. Este será o café da manhã dos filhos Luigi, 12, e Lorenzo, 9, e da mulher, Leticia, 39.

Formado engenheiro pela Fesp (Faculdade de Engenharia São Paulo), na capital paulista, Guimarães está desempregado desde junho de 2016. Há cerca de 40 dias foi a vez da mulher, com quem está casado há 13 anos. Vivem agora de reserva feita prudentemente ao longo dos últimos anos e do dinheiro da rescisão de Leticia.

É mais uma etapa do aperto que se iniciou em outubro de 2014 com a demissão dele da construtora Odebrecht, um dos pivôs do escândalo de corrupção revelado e combatido pela Operação Lava Jato.

Segundo cálculos da Federação Nacional dos Engenheiros, entidade que reúne 18 sindicatos estaduais, de 2015 até o começo de 2017 foram fechadas cerca de 50 mil vagas formais de trabalho para engenheiros. A estimativa se baseia em dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), do Ministério do Trabalho. Nos últimos tempos, o melhor ano para engenheiros foi o de 2012, quando o saldo entre admissões e demissões foi positivo, de 7.529 novas vagas.

"Esse sonho durou só oito meses"

A demissão de Guimarães deixou mágoa. "Foi a Odebrecht que veio atrás de mim, eu estava quieto no meu canto. Puxa, pensei: 'Agora, chega de pular de emprego em emprego'. Trabalhar na Odebrecht era um 'status'. Entrei como gerente de obras e tinha a perspectiva de, em três ou quatro anos, virar diretor da empresa", recorda. "Achei que era o emprego dos meus sonhos, mas esse sonho durou só oito meses."

A Odebrecht alegou "reestruturação" como justifica para mandá-lo embora, mas Guimarães diz acreditar que foi substituído para favorecer o apadrinhado de um diretor, um engenheiro mais jovem que ingressou na sua vaga com salário mais baixo.

Pondera, contudo, que aprendeu um bocado por lá, trabalhando, pela primeira vez na carreira, no desenvolvimento de um projeto imobiliário desde o princípio, em sua interface com outros departamentos, como o de incorporação e vendas. "Antes eu só executava, diretamente no canteiro."

Ele se recolocou no mercado em 2015, mas a vaga ficava a 438 km de sua casa, localizada no bairro do Cambuci, zona central de São Paulo. Era engenheiro da Rodobens Negócios Imobiliários em São José do Rio Preto, no interior paulista. "Eu nunca tinha tido uma experiência longe de casa. Ficava lá a semana inteira sozinho e só voltava para casa na sexta-feira. Passei a conviver com a minha mulher e os meus filhos pela tela de um computador."

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Lorenzo (à esq.) e Luigi jogam "Guitar Hero": os filhos tiveram algumas atividades cortadas, como o judô; nos fins de semana, vão todos de bicicleta para o parque
Imagem: Fernando Moraes/UOL

"É uma adaptação, e sofrer é opção"

O novo desemprego do engenheiro, depois de dois anos no interior, somado ao desemprego da mulher obrigam toda a família a se adaptar a "um novo nível", com realidade financeira muito mais enxuta, como diz Leticia. Um processo que exige sacrifícios de todos.

Não por acaso, sobre a mesa da sala, se encontra o livro "Resiliência", da mineira Érika Stancolovich, sucesso nesses tempos de crise - o Brasil vive a mais profunda recessão da sua história. É Leticia quem lê a obra. Marido e mulher foram outro dia a uma palestra da autora, que prega que "o fatalismo e a vitimação passam longe dos resilientes" e que eles "nunca pensam nas dificuldades do tipo: 'Tudo é difícil' ou 'Não consigo mudar de rumo'".

Quando o desemprego era apenas dele, Guimarães assumiu praticamente sozinho os afazeres domésticos diários, levando e trazendo os filhos da escola, lavando, cozinhando, limpando. A família abriu mão da empregada e, em seguida, da faxineira. "Não era justo ela [Leticia] estar fora o dia todo e eu ficar em casa só no computador e na TV. Eu precisava preservar o descanso dela."

Em fevereiro deste ano, ela foi demitida, assim como outros cerca de 200 funcionários da GRU Airport, a concessionária que administra o Aeroporto Internacional de Guarulhos, na Grande São Paulo. Formada em comércio exterior pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, Leticia trabalhava havia quatro anos no terminal de cargas do aeroporto.

A concessionária pertence à OAS, outra das grandes construtoras flagradas em corrupção pela Lava Jato e que está em processo de recuperação judicial desde abril de 2016. A GRU Airport justificou as demissões como o fim do "grande ciclo de obras realizado e da acentuada queda na movimentação de passageiros".

"Numa hora como essa, é a cabeça da pessoa que conta. É uma adaptação, e sofrer é opção", pondera a mulher. "Se tenho um limão, vou fazer uma torta de limão, não uma limonada, porque a torta é mais docinha", receita.

Marido e mulher dizem ter resgatado o passado humilde dos dois, como "sobreviventes da década de 1980", chamada de "a década perdida". "Eu me virei desde os 12 anos de idade", diz o marido. "Nossos filhos nasceram numa época de euforia. Agora explicamos a nossa nova situação e eles estão assimilando muito bem. Queremos passar a nossa experiência mais antiga para os meninos também", defende a mãe. "A ordem é poupar", resume o pai.

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Desempregado, o engenheiro assumiu a cozinha e afazeres domésticos para poupar
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Luigi, 12 anos: "Estou preocupado com a economia"

A economia significou abrir mão do que consideram supérfluo: a perua escolar que transportava os filhos, as aulas de reforço escolar com professor particular e as aulas extracurriculares, de judô e futebol. Também cortaram viagens (eles viajavam todo ano para o exterior) e os jantares em restaurantes, hábito semanal da família. Perfumes e alimentos caros, não mais. Guimarães diz também "ter tirado o pó" das bicicletas e a família agora pedala por aí, sobretudo nos parques. Afinal, é um passeio gratuito.

Leticia, agora com tempo, pesquisa os melhores preços em três ou quatro supermercados antes de comprar. "Os valores familiares não estão baseados em dinheiro, mas em relacionamentos. Dinheiro é importante, mas não é tudo", frisa a mulher.

Luigi, o filho mais velho, já de buço na face e quase 1,80 m de altura, apesar dos 12 anos, concorda que tem sido bom ter o pai em casa, mas não esconde o desconforto: "Estou preocupado com a economia".

Fica de semblante sério: a escola particular onde estuda, o Colégio Santo Agostinho, cobra mensalidade cara. Sentimento ruim de obrigar os pais a fazerem sacrifícios por ele. Mas a mãe alivia o peso do coração do menino: "Fizemos uma negociação com sua escola, para você e também para o seu irmão, e conseguimos um desconto, pagando antecipadamente as mensalidades do ano todo". "Ah, está bom."

"Saindo da inércia"

A animação da família volta aos olhos com uma perspectiva que se abre: um novo trabalho surgiu para Guimarães. Vai ganhar menos, mas vai trabalhar, pela primeira vez, como pessoa jurídica. Chama-se 3LC (os três Ls de Leticia, Luigi e Lorenzo e o C de Chrystian). A ideia tem um foco específico: avaliação imobiliária e perícia, tema também da pós-graduação que vem cursando.

"Noto que muitos empreendimentos têm sido construídos da forma inadequada. Às vezes por falta de engenheiros experientes, por causa da 'juniorização' do mercado, já que o Brasil despreza a experiência", lamenta. "E também por causa da necessidade de se executar [a obra] muito rápido. Prevejo muitos problemas nos novos projetos de construção em andamento e pretendo trabalhar exatamente aí, na correção deles."

Nisso ele e a mulher veem a possibilidade de futuro para os filhos que têm por criar ainda. Deus, dizem, foi o primeiro engenheiro. "Muita luz! Muita luz!", deseja a mãe, com um abraço forte, sob a chuva fina da noite, à saída.

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Chrystian Guimarães e família confiam na volta por cima com novo projeto
Imagem: Fernando Moraes/UOL

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No dia seguinte à visita da reportagem, Guimarães começou no novo emprego. Por telefone do novo escritório, no segundo dia de trabalho, comentou com sobriedade: "Pelo menos, [estou] saindo da inércia".