Refúgio paulistano, Ilha do Bororé tem balsa, "sonho de cassino" e orgânicos
Quase todo rodeado por água e coberto por uma densa vegetação, o bairro a cerca de 30 km do centro de São Paulo é conhecido como Ilha do Bororé. Vizinho de Parelheiros e Grajaú, bairros no extremo sul da capital, está dentro de uma APA (Área de Proteção Ambiental) e guarda um importante fragmento da mata atlântica que ainda resta na cidade.
(O correto, na realidade, é chamar Bororé de península, porque um dos seus lados tem ligação com o continente, mas “ilha” pegou e ficou.)
O trajeto até lá dura no mínimo uma hora de carro, se o trânsito estiver bom, saindo do centro. O acesso principal é pelo Grajaú, onde é necessário pegar uma balsa e navegar alguns minutos por um pedacinho da represa Billings. É só chegar e parar na fila para fazer a travessia, que não é cobrada pela Emae (Empresa Metropolitana de Águas e Energia), operadora da embarcação.
Tudo simples, mas sem muito controle. Quem está acostumado sabe que ônibus e ambulâncias têm preferência para entrar na balsa. A capacidade é para dez carros, algumas motos e pedestres.
“Aqui é gostoso de morar, um lugar tranquilo para descansar. O lado ruim é a balsa, e os ônibus também, que demoram. Só tem uma linha e passa a cada 30 minutos”, diz Wesley Silvestre, 20.
Criado no bairro, ele não mora no Bororé desde os 17 anos. Visita o avô quase todo dia, mas decidiu viver do outro lado.
Embora a balsa opere sem interrupção, a espera pelo embarque pode chegar a três horas, principalmente nos finais de semana. Como o local é muito visitado por conta da natureza e da tranquilidade que oferece, as filas se espicham por dezenas de metros nos sábados e domingos de calor.
Jovens querem empregos urbanos
A possibilidade de uma vida mais prática levou o jovem Wesley para a margem de lá. A moto é usada para fazer entregas, e serviços básicos --hospital e supermercado, por exemplo-- são mais acessíveis.
“Trabalho já é difícil [na ilha], só se você achar algum terreno para cuidar, limpar. Muita coisa não tem aqui, e aí tem que passar para o lado de lá. Só tem umas vendinhas e, se você passar mal, é obrigado a ir para o outro lado [para atendimento médico]. Estrutura não tem, é embaçado...”, ele afirma.
Valéria, 48, que está nesta região há 11 anos e hoje é presidente da cooperativa de produtores rurais, foi criada na periferia da zona leste de São Paulo e se mudou para o Bororé assim que comprou o sítio de um antigo morador. Nunca tinha colocado as mãos na terra, mas sempre gostou de mato, como ela diz.
Naquela época, ela e Vânia Ferreira dos Santos, sua companheira, já tinham 15 cachorros. Hoje, são 50, mantidos em um lote perto do sítio, e mais uma família de outros bichos que elas foram recolhendo no bairro ou que acabaram deixados na sua porta.
Vânia trabalha fora do bairro, em uma escola de educação infantil, mas Valéria foi deixando sua parte urbana e se tornou lavradora. Fez cursos de agricultura orgânica e biodinâmica e, na Cooperapas - Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo, lidera mais de 30 pessoas.
"A gente está descobrindo que, unidos, conseguimos muita coisa. A gente conseguiu agora um projeto para a cooperativa comprar um caminhão refrigerado. Vamos pagar 70% de R$ 200 mil a fundo perdido, e aí poder fazer as entregas em dias de calor.”
Retorno às origens
Tomi Kunikawa, 62, filha de um italiano e de uma descendente de japoneses, morou no Bororé até terminar a educação básica. Para fazer faculdade, mudou-se para o centro de São Paulo e só aos finais de semana e feriados retornava ao sítio da família.
Por conta de eventos que ocorriam na propriedade, alugada com frequência para festas e passeios, ela foi ficando cada vez mais longe da cidade, até que decidiu voltar de vez para o sítio, com a mãe, a filha e o irmão.
“Voltamos para a terra. A gente escuta uma abelha voando, o passarinho cantando, não tem quase barulho de carro. Atravessou a balsa, a gente já acha que é barulhento”, opina.
Como os eventos no sítio foram reduzidos, a família decidiu apostar no cultivo de orgânicos. Além de vender para restaurantes de São Paulo, Tomi começou a entregar cestas de produtos para vizinhos do Bororé.
O sistema, que ela chama de CSA ou Consumidor que Sustenta a Agricultura, tem como princípio eliminar intermediários no fornecimento de orgânicos para deixar o preço mais em conta e os produtos mais frescos. Por R$ 30, o cliente leva oito itens: salada, tempero e algo para cozinhar, tudo colhido poucas horas antes da venda, na entrada do bairro.
“Essa proximidade com o consumidor é muito rica. Essas cestas, a gente tenta fazer mais para a periferia. As pessoas mais simples têm direito de comer orgânicos também”, defende.
A Ilha do Bororé tem duas escolas públicas, um posto de saúde, alguns mercadinhos, bares, restaurantes e uma igrejinha centenária, de 1904, consagrada a São Sebastião. O abastecimento de água é feito por poços e o esgoto é despejado em fossas sanitárias ou in natura. Celular e internet funcionam, mas o sinal é intermitente.
Com pouca oferta local de mão de obra, é comum que propriedades rurais sejam colocadas à venda quando os donos já não podem mais trabalhar na roça. Às vezes, são transformadas em sítios de veraneio, frequentemente alugados para temporadas ou eventos de fim de semana.
A população do bairro, que é de aproximadamente 5.000 pessoas, chega a dobrar em dias de verão. Barulho, acúmulo de lixo e aumento do consumo de água e da produção de esgoto são consequências perceptíveis, segundo a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente. Não há posto da Polícia Militar dentro do bairro nem uma base de fiscalização ambiental.
Para quem pensa que a vida longe da poluição e do congestionamento é “tranquila”, basta ficar algumas horas com Tomi ou Valéria, duas mulheres agitadas e que trabalham sem parar. Para elas, “falta tempo” tanto quanto na metrópole, mas aqui se vive em comunidade.
“Não tem infraestrutura e, onde não tem, a solidariedade é maior. Você fica mais amigo do seu vizinho, você fica mais humano”, diz Valéria.
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