Topo

Como é viver no lugar onde se morre mais cedo, na média, em São Paulo?

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

04/04/2017 04h00

Uma única via, a avenida dos Metalúrgicos, concentra a maioria dos serviços disponíveis aos moradores de Cidade Tiradentes, um dos 96 distritos de São Paulo, na zona leste da capital. Distante 30 km da praça da Sé (centro da capital paulista), ali estão lojas, supermercado, o terminal de ônibus e também o centro cultural, o hospital e o pronto-socorro, por exemplo.

Fora desta avenida principal, só mesmo as lojinhas de “garagem” e uma imensidão de prédios da Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação) até onde a vista alcançar. Segundo a Prefeitura de São Paulo, o distrito abriga o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina, com cerca de 40 mil unidades, a maioria construída na década de 1980.

Projetado para ser um “bairro dormitório”, hoje ele possui a décima maior concentração populacional em São Paulo --288 mil habitantes, de acordo com a Fundação Seade-- e alguns dos piores indicadores quando se pensa em qualidade de vida.

Em Cidade Tiradentes, a idade média ao morrer é de 53,85 anos, a mais baixa no Mapa da Desigualdade 2016, uma compilação de dados oficiais organizada pela ONG Rede Nossa São Paulo. Para efeito de comparação, nesse quesito, o lugar com média mais alta na capital é o bairro de Alto de Pinheiros (zona oeste, a 70 km de Cidade Tiradentes), onde chega a 79,67 anos de vida.

“Isso é o mesmo que dizer que Alto de Pinheiros tem índice semelhante ao de um país como a Noruega, enquanto Cidade Tiradentes tem situação parecida com a de Serra Leoa, na África”, diz Américo Sampaio, gestor de projetos na entidade. “É um absurdo uma diferença de 25 anos dentro de uma mesma cidade, tem alguma coisa errada”, afirma.

Há uma década publicado anualmente pela Rede Nossa São Paulo, o mapa apresenta informações sobre os distritos paulistanos, considerando, por exemplo, a quantidade de serviços públicos oferecidos para a população nesses locais. São dados sobre assistência social, cultura, educação, esporte, saúde, trabalho, violência e outros aspectos que têm influência na qualidade de vida, num total de 42 indicadores.

É o mesmo que dizer que Alto de Pinheiros tem índice semelhante ao de um país como a Noruega, enquanto Cidade Tiradentes tem situação parecida com a de Serra Leoa, na África

Américo Sampaio, gestor de projetos da ONG Rede Nossa São Paulo

“Sem dúvida nenhuma, o conjunto de equipamentos públicos, infraestrutura urbana e questões relacionadas a qualidade de vida e bem-estar são os principais fatores que influenciam no tempo médio de vida”, afirma Sampaio. “Dando uma olhada mais ampla no mapa, não apenas no pior e no melhor resultado, você vai ver que os distritos onde o tempo médio de vida é maior são os mais ricos. Isso deflagra uma situação que precisa ser debatida em relação ao acesso aos equipamentos públicos.”

Emprego longe

Cidade Tiradentes tem o pior indicador no mapa também em “mortalidade por causas mal definidas”, que avalia o grau da qualidade da informação sobre causas de morte. Para a ONG, porcentagens elevadas indicam “deficiências” nas declarações sobre o que provocou o óbito. São 5,88% no bairro da zona leste. Na capital, 48 distritos (metade do total) têm este índice abaixo de 2%, e apenas quatro têm este número acima de 5%.

O distrito vai mal também em geração de trabalho. Embora concentre cerca de 2% da população total de São Paulo, tem o segundo pior desempenho no mapa, considerando o número de vagas por habitante. São 316,6 empregos para cada grupo de 10 mil pessoas. Na Barra Funda, que tem o melhor índice na capital, esse número vai para 60.900,66 em cada grupo de 10 mil pessoas.

Entre os 96 distritos, seis têm índice acima de 20 mil vagas; 15 têm índice entre 10 mil e 20 mil; 51 têm número entre 1.000 e 10 mil; e 24 distritos têm número abaixo de 1.000.

Essa diferença abissal de oferta de emprego faz com que muita gente só consiga trabalhar fora do bairro, muitas vezes longe de casa.

Esta é a situação do metalúrgico Gilvan Souza dos Santos, 46, que mora há 14 anos em Cidade Tiradentes e cruza a capital para trabalhar na área gráfica.

“Eu atravesso São Paulo, trabalho no Jaguaré [a 60 km do bairro]. Levo umas duas horas e pouco para ir até lá, de condução”, ele afirma.

Às vezes, o metalúrgico, casado e pai de dois garotos em idade escolar, usa o próprio carro para conseguir reduzir à metade o tempo de viagem.

“Deveriam trazer mais coisas para cá, a parte de cultura, mais atividade para as crianças, empregos. A gente teria mais tempo para ficar com os filhos”, ele lamenta.

Eu atravesso São Paulo, trabalho no Jaguaré [a 60 km do bairro]. Levo umas duas horas e pouco para ir até lá, de condução
Gilvan Souza dos Santos, metalúrgico 

Alta vulnerabilidade

A operadora de telemarketing Gláucia Cristiane Magalhães Ribeiro, 42, também só achou emprego fora e bem longe. Ela faz um percurso de cerca de 30 km para chegar ao serviço.

No dia em que a reportagem do UOL esteve no bairro, Gláucia precisou de atendimento médico, por causa da pressão arterial e da febre alta. Disse que não demorou, como de costume, para ser amparada, talvez porque estivesse muito mal, mas ela reclama, de uma forma geral, da superlotação no único hospital no bairro e no pronto atendimento.

“Já cheguei a esperar dez horas, quando tive dores na lombar. Falta médico, porque os médicos não são daqui, são de longe. Nem todos querem vir para cá”, afirma.

Há cerca de quatro meses, ela conta, uma médica da UBS (unidade básica de saúde) próxima a sua casa abandonou o posto após apanhar de moradores da região. “Os bandidos entraram no posto e, além de agredir a médica, roubaram o carro dela. Ela foi embora, abandonou a UBS e não voltou mais. Agrediram mesmo, puxaram pelos cabelos...”

Falta médico, porque os médicos não são daqui, são de longe. Nem todos querem vir para cá
Gláucia Cristiane Magalhães Ribeiro, operadora de telemarketing

Segundo dados da Prefeitura de São Paulo, com base no Censo do IBGE de 2010, 15% das famílias residentes de Cidade Tiradentes estão em situação de alta ou muito alta vulnerabilidade.

“É como se a desigualdade na cidade de São Paulo estivesse congelada, imutável. Não dá uma demonstração de que vai melhorar, fica estagnada no mesmo estágio. Isso é grave para toda a população: para rico, para pobre, para quem mora no centro, para quem mora na periferia”, defende o pesquisador Sampaio.