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Leitura pela liberdade: Em presídio federal, detento corta 112 dias da pena com resenhas de livros

Trecho de resenha de detento sobre o livro "Crime e Castigo" - Divulgação/Ministério da Justiça
Trecho de resenha de detento sobre o livro "Crime e Castigo" Imagem: Divulgação/Ministério da Justiça

Bernardo Barbosa

Do UOL, em São Paulo

03/05/2017 04h00

Um preso condenado por assassinato, sequestro e roubo conseguiu reduzir sua pena em 112 dias após elaborar 28 resenhas de livros que leu. Ele é o recordista do programa Remição pela Leitura, do sistema penitenciário federal, que prevê a redução de quatro dias da pena pela leitura de cada obra, desde que as resenhas feitas pelos detentos atendam a critérios de estética (usar parágrafos, letra legível), fidedignidade (ou seja, não plagiar) e limitação ao tema.

O Ministério da Justiça, que enviou as informações ao UOL, não divulgou o nome do detento, mas apenas suas iniciais: M.A.R.. Aos 40 anos, ele está preso há 17 e deve chegar ao limite máximo de permanência na cadeia previsto na lei brasileira, de 30 anos, já que sua pena total é de 197 anos. O preso foi condenado por roubo qualificado, extorsão praticada mediante violência qualificada e pela morte e extorsão mediante sequestro.

Com quase metade da vida atrás das grades, M.A.R. fez em reclusão o que outros fazem em liberdade. Na penitenciária federal de Mossoró (RN), onde passou os últimos quatro anos, completou o Ensino Fundamental, fez três cursos profissionalizantes, prestou o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) três vezes e até se casou.

17.abr.2017 - Resenha do livro "O noviço", peça de Martins Pena, feita por preso da penitenciária federal de Mossoró no programa de remição pela leitura - Divulgação/Ministério da Justiça - Divulgação/Ministério da Justiça
Resenha de "O noviço", de Martins Pena, feita pelo preso M.A.R.
Imagem: Divulgação/Ministério da Justiça

Detento “de alta periculosidade”

Antes de Mossoró, M.A.R. passou pela penitenciária federal de Catanduvas, onde chegou em 2010, segundo o Ministério da Justiça, “em virtude dos ataques no Rio de Janeiro” em novembro daquele ano. A onda de violência deixou ao menos 39 mortos em operações policiais e quase 100 veículos queimados.

O criminoso agia na Baixada Fluminense, onde integrava “uma organização criminosa com atuação nacional”. De acordo com o governo, M.A.R. era considerado “um preso de alta periculosidade envolvido na prática de crimes graves, tais como: homicídios, extorsão, roubo qualificado, associação criminosa e ameaça.” Ele voltou a ficar preso no Rio em março.

Só em 2016, ele leu desde best-sellers como “A última música”, de Nicholas Sparks e “Quem mexeu no meu queijo”, de Spencer Johnson, até clássicos como “Memórias de um sargento de milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, e “O apanhador no campo de centeio”, de J.D. Salinger.

Presos já fizeram mais de 6.000 resenhas

Coincidência ou não, um dos livros mais requisitados pelos internos das quatro penitenciárias federais é “Crime e castigo”, de Dostoiévski. Um clássico da literatura mundial, a obra conta a história de um jovem que enfrenta dilemas morais e existenciais após decidir matar uma agiota.

“Nota-se, nessa obra, a que ponto o ser humano pode chegar por causa do dinheiro”, escreveu um detento em uma resenha sobre o livro.

“Crime e castigo” foi a primeira obra a ser doada para o projeto, que foi criado em 2009 na penitenciária federal de Catanduvas (PR). A doação partiu de juízes federais do Paraná --entre eles Sérgio Moro, que era juiz de execução penal e depois ficou conhecido por ser um dos responsáveis pelas ações da operação Lava Jato em primeira instância. Desde então, se espalhou por diversas cadeias pelo país.

Um dos objetivos iniciais era ocupar os presos, que nos presídios federais passam 22 horas sozinhos nas celas. Segundo a coordenadora-geral de Assistências das penitenciárias federais, Jocemara Silva, é possível perceber que a leitura melhora o desempenho dos detentos que estudam e inclusive fez alguns deles despertarem para a escrita literária. Os livros também trazem aos presos, em certos casos, reflexões morais.

“Nas falas de alguns, a gente conseguia perceber noções de moralidade, de perceber que estava ali por causa das suas atitudes", disse.

Resenha de detento sobre o livro "A menina que roubava livros" - Divulgação/Ministério da Justiça - Divulgação/Ministério da Justiça
Resenha sobre "A menina que roubava livros", de Markus Zusak
Imagem: Divulgação/Ministério da Justiça

Apesar de as penitenciárias terem bibliotecas com centenas de títulos, as obras que fazem parte do programa Remição pela Leitura são cerca de 20, explica Jocemara. Em geral, são livros escolhidos para provocar algum tipo de reflexão ou clássicos da literatura brasileira, voltados principalmente para os presos que querem prestar vestibular ou o Enem.

Segundo o Ministério da Justiça, entre os títulos preferidos estão “Crime e castigo”; “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago; “Dom Casmurro”, de Machado de Assis; e “Sagarana” e “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa.

Os presos têm 30 dias para ler um livro e fazer a resenha. Cada detento pode elaborar até 12 textos por ano, o que representaria uma redução de 48 dias na pena. A produção dos internos é avaliada por pedagogos, psicólogos e professores.

De acordo com o Ministério da Justiça, 6.004 resenhas foram produzidas pelos detentos das unidades federais desde 2010. Delas, 5.383 foram aprovadas pela equipe pedagógica.

“O nível de escolaridade é muito heterogêneo, então temos critérios básicos para abarcar o maior número de presos. A gente faz a avaliação de acordo com o nível de escolaridade e com os critérios básicos: fidedignidade, estética e não fugir do tema”, disse Jocemara.

23.fev.2017 - Resenha de detento sobre o conto "O menino e o velho" - Divulgação/Ministério da Justiça - Divulgação/Ministério da Justiça
Resenha sobre o conto "O menino e o velho", de Lygia Fagundes Telles
Imagem: Divulgação/Ministério da Justiça

Adesão total

Segundo Jocemara, a adesão dos presos à remição pela leitura nas penitenciárias federais é de praticamente 100% entre os que não são analfabetos.

“Tem gente que vai ter, na cadeia, o primeiro contato com a escola”, disse.

No momento, está em andamento uma licitação para a compra de cerca de 100 novos títulos para o projeto. Eles serão diferentes entre si por penitenciária, para que seja possível revezar as obras entre as unidades.

“Não vou ser utópica, dizer que a gente vai transformar o mundo com um projeto. Mas o preso vai voltar para a sociedade. A pessoa desocupada tem tempo de sobra para pensar em crime”, afirmou Jocemara. “Todos nós saímos ganhando se esse indivíduo, no mínimo, atenuar o nível de violência."