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Comerciantes convivem com "favelão", insegurança e pena na nova cracolândia

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

10/06/2017 04h00

“Escravizaram as pessoas justamente em uma praça que tem nome de abolicionista”, constata o segurança privado João José Gomes de Lima, 43, nas imediações da praça Princesa Isabel, na Luz, região central de São Paulo. Ele se refere aos usuários de crack que migraram da rua Helvétia, no último dia 21, em uma operação conjunta entre as polícias Civil e Militar e a GCM (Guarda Civil Metropolitana). “Para piorar, a área da praça, que já era degradada, agora pode ficar estigmatizada com toda essa favela que está se formando lá –a favela da nova cracolândia”, completa.

A menção à favela não é em vão: se antes a cracolândia ficava entranhada na Helvétia e na alameda Dino Bueno, a cerca de 400 metros dali, na praça Princesa Isabel é impossível não se deparar com a imensidão de barracas e pessoas – especialmente nas avenidas Rio Branco e Duque de Caxias ou na rua Guaianases.

O segurança João trabalha a menos de 100 metros da nova cracolândia, na praça Princesa Isabel - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
O segurança João trabalha a menos de 100 metros da nova cracolândia, na praça Princesa Isabel
Imagem: Janaina Garcia/UOL

Além dos barracos, chama atenção também a quantidade de lixo e de animais à solta –cachorros, pombas, e, segundo frequentadores do ‘fluxo’ de consumo, ainda que não residentes ali, também ratos. Adultos, crianças e idosos são vistos no local –onde a menor intenção de se fotografar é interpretada como ameaça ou bisbilhotice e devolvida com pedras, gestos obscenos e tentativas de roubo, como a reportagem verificou ao longo da semana no final da manhã ou início de tarde.

Mecânico de uma oficina na rua Guaianases a menos de 100 metros da praça, Roberto Cavalcante, 34, lamenta que o filho de 9 anos e os sobrinhos não possam mais jogar bola na Princesa Isabel. “A praça não era uma maravilha, mas pelo menos dava para as crianças brincarem e para os vizinhos armarem um churrasquinho nela aos finais de semana. Agora dá nojo entrar ali, tamanho o cheiro de urina e a quantidade de fezes que se espalha pela calçada”, define. “Minha sogra mora perto aqui da oficina e precisa fechar portas e janelas porque o cheiro já está entrando dentro de casa. E à noite não tem mais como sair, porque o risco de roubo aumentou muito”, complementa.

Mais perto da praça do século 19 cujo símbolo maior é a estátua do patrono do Exército, Duque de Caxias, o dono de uma lanchonete endossa as palavras do mecânico e mostra o espaço na parede onde só restou a armação da TV.

“Entraram aqui 3h da madrugada, semana passada, e roubaram. A praça virou um favelão, com a diferença de que tem muito mais bandido e maloqueiro do que normalmente deve ter em uma favela. É muito pior”, classificou André Oliveira, 31, proprietário do estabelecimento. “Agora eu abro mais tarde e fecho mais cedo – e ainda é muito B.O. quando tento abrir cedo, porque a rua fica cheia de usuário. Isso aí matou o comércio aqui; eu mesmo perdi 80% da clientela com tanta sujeita e insegurança”.

O comerciante André trabalha a poucos metros da nova cracolândia - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
O comerciante André trabalha a poucos metros da nova cracolândia
Imagem: Janaina Garcia/UOL

Dono de um restaurante em frente à concentração de usuários, na praça, Vanílson Carvalho, 47, logo corrige o interlocutor ao ser indagado sobre “a nova cracolândia”: “É a ‘cracolândia estendida’, você quer dizer. Está muito difícil aqui, mas não vou me acostumar com a ferida”, disse.

Discreto, Carvalho, conhecido como “Mineiro”, explica aos clientes que entram ali no horário do almoço que a situação “é provisória. Deus ajuda, é provisória”. Mesmo assim, conta que perdeu 40% do movimento, desde a operação na Helvétia, e pondera que tem dez funcionários registrados.

“Conversei com gente do secretariado municipal que me falou sobre os contêineres e outras vagas de atendimento emergencial que serão abertas, além de clínicas que receberão essas pessoas para tratamento. Eu só vou aguentando aqui porque o imóvel é meu –e quem vai querer alugar na atual situação?”, questiona.

Entre um cliente e outro que trabalha ou mora na região –Mineiro está ali há 26 anos --, entram também usuários da cracolândia que pedem água ou levam comida como macarrão instantâneo para aquecer em micro-ondas. No final da manhã dessa sexta (9), por exemplo, quando o UOL esteve no local, uma jovem aparentando 20 anos, usuária, comprou um chá de camomila e voltou para o fluxo; um outro rapaz, na faixa dos 40 anos, descalço, pagou por uma vitamina de banana para viagem, e retornou à praça.

“Abro uma hora mais tarde e fecho uma hora mais cedo. Tive que direcionar os ventiladores do restaurante à porta, para não entrar tanto cheiro de urina. Parei de vender bebida alcoólica e de abrir aos sábados. E tento tranquilizar os clientes que têm receio de assaltos –se não, eles veem isso aqui e simplesmente não retornam mais”, afirmou. O que espera no curto prazo? “Que haja justiça, respeito, que as ações sejam rápidas, mas planejadas, não atabalhoadas como ocorreram na rua Helvétia. Caso contrário, só vão transferir de novo o problema –e de verdade, eu torço por eles [usuários], para que consigam se recuperar dessa vida”, declara.

Restaurante em frente à nova cracolândia no centro de SP - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
Restaurante em frente à nova cracolândia no centro de SP
Imagem: Janaina Garcia/UOL

Comerciantes alteram horário de funcionamento em razão do 'fluxo'

Há seis meses na região da praça, mas a 200 metros dela, o também comerciante Antonio Cosme Machado, 49, disse ter menos paciência ao ser abordado, no estabelecimento, pelos usuários que aparecem para pedir comida ou água. “Se a gente for dar, vicia. Eu já estou fechando mais cedo [em vez de 22h, 20h] e já perdi de 20% a 30% da clientela. Já viu o tamanho que está aquele favelão que virou a praça?”, pergunta. Funcionária da lanchonete, a garçonete Gabriela Gomes de Lucena, 18, passou a entrar às 7h, em vez de 6h, para evitar a praça ainda sem a luz do dia.

A garçonete Gabriela e o comerciante Antônio em uma lanchonete próximo à nova cracolândia - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
A garçonete Gabriela e o comerciante Antônio em uma lanchonete próximo à nova cracolândia
Imagem: Janaina Garcia/UOL

“Fico receosa de andar perto da praça a pé, mas tem as bases da Polícia Militar e eu procuro não perdê-las de vista. Mas olho para esses usuários e tenho pena deles”.

Também comerciante, mas em uma loja de moto-peças, Bruna Dellamonica, 19, arrisca um palpite sobre a reação de assombro a uma cracolândia agora mais visível: “Talvez as pessoas não enxergassem a realidade porque a vissem de longe. E quem está lá na praça são pessoas também, mas em uma realidade bem mais triste, às vezes, da de quem as vê.”

Bruna Dellamonica trabalha em uma loja de moto-peças perto da cracolândia da praça Princesa Isabel - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
Bruna Dellamonica trabalha em uma loja de moto-peças perto da cracolândia da praça Princesa Isabel
Imagem: Janaina Garcia/UOL

Promotor: praça não tem "condições civilizatórias mínimas"

Para o promotor de Saúde Arthur Pinto Filho, a praça Princesa Isabel é “um dos piores lugares para esses usuários de estabelecerem”. “A antiga cracolândia ficava em frente às tendas [da Prefeitura do do governo do Estado] –onde tinha chuveiro, banheiro, água para beber, porque o crack dá sede; além de equipes de enfermagem e lugar para que lavassem as roupas. Na Princesa Isabel, não há condições mínimas civilizatórias”, definiu.

Na avaliação do promotor, o deslocamento dos usuários majoritariamente a um mesmo ponto pode ser entendido como “um mecanismo de auto-proteção – especialmente porque vem a eles a ideia da internação compulsória”.

“Mesmo os contêineres inaugurados essa semana ficaram longe, em um lugar fechado [o estacionamento gradeado da GCM, a cerca de 700m da praça], e em um ambiente ainda um pouco convulsionado. Mas vejo que há um movimento da prefeitura em distensionar –e o ideal é que voltassem a um processo de negociação com ONGs, igrejas e o próprio Ministério Público para que, juntos, se acertem na maneira de as coisas avançarem”, observa.

“Parece que perceberam que na base da violência não dá para resolver, muito menos em uma ação destrambelhada. Além disso, as pessoas que estão na cracolândia não são zumbis: podem estar fora de si durante o uso da droga, que dura 10 ou 15 minutos, mas há uma condição de diálogo, principalmente, no caso das ONGs, com quem está conversando na área há muito tempo. Abrir negociação com quem tem condição de negociar para que as coisas comecem a evoluir é essencial –mas é um trabalho de formiguinha”, ele completa.

O promotor admite que “é absolutamente fora da razoabilidade” acabar de vez com as drogas porque “isso não acabou em lugar nenhum do mundo”. “Essa praça é um microponto de um problema de droga no Brasil e o revela de forma grotesca, mas, se for feita uma política consistente nela, pode-se ter algo que seja um exemplo para o restante do país”, aposta o promotor.

Em nota, a prefeitura afirmou que "todas as ações voltadas aos dependentes químicos têm por premissas o acolhimento, o tratamento de saúde e a reinserção social dessas pessoas". "Nenhuma ação da prefeitura primou ou foi pautada pela violência. A operação realizada pela Polícia no mês passado teve objetivo de prender traficantes, o que foi feito, liberando uma área da cidade que era dominada pelo crime organizado."

Repasse de recursos da União

Nessa sexta, o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário informou que vai destinar R$ 25 milhões para o programa Redenção, iniciativa da prefeitura de São Paulo para atender usuários de drogas na Cracolândia. De acordo com o secretário municipal de Desenvolvimento Social, Felipe Sabará, os recursos serão usados na oferta de serviços e instalação de equipamentos.

"A gente tem atuado em parceria com o município e o Estado, nas áreas do desenvolvimento e da saúde, para execução de serviços, equipamentos e encaminhamentos dessa população, tanto em situação de rua, quanto em dependência química", afirmou Sabará.

Além da estrutura dos contêineres – para banho, pernoite e encaminhamento a centros de atendimento --, a administração informa que, até o próximo dia 26, a região receberá outro grupo de contêineres com espaço para 150 pessoas dormirem e 200 tomarem banho.

Praça está em ponto histórico da cidade

A praça Princesa Isabel, localizada na confluência das avenidas Duque de Caxias e Rio Branco, foi batizada com o nome de uma das coautoras da Lei Áurea --que revogou a escravidão o Brasil, em 1888 --em 1921. Antes, era conhecida como “Campo das Cavalhadas” e  recebeu corridas de cavalos até 1876, quando foi inaugurado o Hipódromo Paulistano, na Moóca (zona leste).

A praça passou por uma reurbanização mais completa na década de 1970; antes, nos anos 1960, teve inaugurado o Monumento a Duque de Caxias.

A região onde a praça está localizada, nos Campos Elíseos, foi berço da elite cafeeira paulistana até os anos 1930, quando estruturas de transporte como as estações ferroviária e rodoviária Júlio Prestes --esta, depois migrada para o terminal rodoviário do Tietê, na zona norte --mudaram as características regionais do bairro. Parte dos palacetes e casarões da época figuram em estruturas precárias como as que são vistas nas pensões que a Prefeitura emparedou, há duas semanas, na região da Helvétia e da Dino Bueno.