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'Pulverizadas, repressivas e insuficientes': Entidades criticam ações federais anticrack

Usuários circulam pela região da cracolândia paulistana, um dia depois da operação realizada em maio que visou eliminar concentração Imagem: Nelson Antoine - 22.mai.2017/UOL

Clayton Freitas

Colaboração para o UOL, em São Paulo

11/06/2017 04h00

Entidades que lidam diretamente com a questão do crack no Brasil alertam que os programas federais estão esvaziados, são apenas pontuais e impedem um real combate ao avanço da droga e um adequado tratamento aos dependentes químicos. As principais críticas de entidades diversas, que vão da Federação Nacional dos Municípios ao Conselho Federal de Serviço Social, passando pelas associações de Psiquiatria e a Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas, indicam falhas na repressão ao tráfico, cuidado, acolhimento e reinserção, estes pilares fundamentais do programa.

Apesar de ser um problema que flagela o país há mais de duas décadas, o primeiro grande projeto anticrack foi anunciado pelo governo federal em 2010, último ano da gestão do ex-presidente Lula (PT). Até então, a questão do crack não era alvo de programa específico. À época, dos R$ 430 milhões anunciados para criação de propostas, apenas 30% foram utilizados.

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Mais tarde, no primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), foi lançado o programa "Crack, É Possível Vencer", que consistia em aportes de R$ 4 bilhões. Destes, apenas R$ 3,5 bilhões foram reservados e, ao final, só R$ 1,7 bilhão foi gasto de fato. Metade disso, segundo levantamento da FNM (Federação Nacional dos Municípios), foi usada para capacitação de pessoal.

Além desses recursos, o Funad (Fundo Nacional Antidrogas) tinha uma reserva de R$ 1,7 bilhão. Porém, 80% do valor não foi liberado. A quantia foi usada pelo governo federal para fazer caixa, segundo parecer técnico da FNM.

Se a avaliação das entidades era de insipiência nas gestões Lula e Dilma, o governo Michel Temer (PMDB) recebe críticas ainda mais firmes. "Hoje em dia não existe um trabalho específico. Existem ações pulverizadas e não coordenadas, que não fazem frente à necessidade de uma política nacional de prevenção", segundo o presidente da federação dos municípios, Paulo Ziulkosk.

Rubens Adorno, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e também presidente da Abramd (Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas), ataca uma dessas ações pulverizadas, o Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência). "Temos escatologias político-ideológicas como o Proerd, que me parece uma cópia da política de guerra às drogas dos EUA e tem, na sua proposta, talvez resquícios e herança do governo militar", afirma.

Adorno sustenta essa afirmação a partir da conclusão de que o “fenômeno drogas” é algo sensível à sociedade e, devido a isso, “as políticas são apenas setoriais, acabando por expressar a tendência política vigente no país”.

Ainda segundo Adorno, o governo federal sempre viveu uma contradição, já que mantinha programas de redução de danos, oriundos de propostas de movimentos sociais, e, por outro lado, sofria pressões de grupos conservadores --tais como os das bancadas evangélica e católica na Câmara dos Deputados--, ao criar o "Crack, É Possível Vencer".

"Foi a resposta do governo federal a essas pressões, alocando quantia razoável de recursos para financiar programas locais", diz Adorno.

Imagem: Nelson Antoine/UOL

“Higienismo social praticado no século 19”

O programa "Crack, É Possível Vencer" prioriza ações em municípios com mais de 200 mil habitantes. Ele foi lançado em 2010, logo após um estudo conjunto da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) com a Senad apontar que existiam no país 29 cracolândias espalhadas por 17 Estados. À época, eram 2 milhões os usuários da droga no país.

Sua essência consiste num tripé composto por prevenção, cuidado e segurança. Além de criar rede de atendimento e acolhimento, também fornecia veículos para monitoramento de concentrações de tráfico e uso de drogas.

Entre outros veículos, foram entregues aos municípios um total de 197 ônibus equipados com câmeras, monitores, frigobar e outros dispositivos para que as equipes pudessem monitorar os locais onde eles eram estacionados. Destes, 54 (mais de um quarto) tiveram problemas e foram encostados, segundo um balanço da Federação Nacional dos Municípios feito em 2016.

Solange Moreira, diretora do Cfess (Conselho Federal de Serviço Social), afirma que o conselho fez duras críticas ao programa desde a época de seu lançamento. “Isso porque o mesmo, apesar das três vertentes que propõe (cuidado, prevenção e autoridade), tem focado na autoridade, ou seja, na linha repressiva e violenta, deixando os outros dois eixos em segundo plano”, afirma.

“Em nome de uma ‘segurança’, grupos populacionais estão sendo retirados dos centros urbanos e levados para depósitos de pessoas; residências são invadidas, pessoas são recolhidas, dentre outras situações de violação de direitos, como o recente caso da região da Luz em São Paulo, denominada pela imprensa como ‘cracolândia’”, critica Solange.

O que fica explícito, segundo ela denomina, “é a retomada do higienismo social praticado no século 19, hoje revestido de acolhimento, que se traduz em recolhimento compulsório”.

Inscrição em muro na região da cracolândia, no centro de São Paulo Imagem: Marlene Bergamo/Folhapress

A médica Ana Cecília Marques, coordenadora da Comissão de Dependência Química da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), afirma que a entidade se debruça sobre a questão desde que o crack começou a ser discutido com mais frequência no país, no início dos anos 2000. À época foi elaborado um guia a ser distribuído em Caps (Centros de Atenção Psicossocial). Ele é o resultado de estudos científicos a respeito de como lidar com a questão e integra o projeto “Diretrizes”, da AMB (Associação Médica Brasileira).

Ela afirmou que a capacitação dos profissionais demorou para começar e diz que as ações são apenas pontuais. “Sabemos muito pouco para onde foi o dinheiro. Eu não vi nada disso [programa anticrack] acontecer para valer. Precisa ser permanente e não pontual”, afirma.

Ana afirma que a vertente de só tratar quem está nas ruas é falha. “Nós não vamos acabar com as drogas. Não adianta ter tratamento só para quem está nas ruas. Tem sim que haver repressão [aos traficantes]. Do jeito que a coisa está, é o mesmo que oferecer um doce a um diabético. Ele vai ficar na fissura. É o que ocorre na cracolândia [em SP], onde as tendas estão sendo montadas perto de onde existe uma ‘feira’ de drogas”, afirma.

A coordenadora da ABP ainda afirma que são poucos os médicos especializados em tratamento aos dependentes químicos nos centros de atenção psicossocial e serviços congêneres. “É multiprofissional [o atendimento]. É para todos os profissionais, entretanto, se não tiver médico, não é tratamento de qualquer tipo de droga”, afirma.

Internação involuntária

A internação involuntária --quando o dependente é levado para o serviço com o consentimento da família-- ou a compulsória --determinada pela Justiça-- divide o Conselho Federal de Serviço Social e a coordenadora da Associação Brasileira de Psiquiatria.

Para a assistente social Solange Moreira, do Conselho Federal de Serviço Social, esses tipos de tratamento são "proibizantes, medicalizantes e punitivos de usuários de drogas".  Para a entidade, o tratamento adequado seria os oferecidos nos serviços especializados e usando métodos tais como o de redução de danos. 

A psiquiatra Ana tem opinião diferente e diz ser a favor das duas. “Cada caso é um caso. Isso integra as diretrizes de tratamento. Depende da gravidade da situação”, avalia.

Saúde mental

Procurado, o governo Temer não informou qual é a verba específica para o combate ao crack no país. Em nota, o Ministério da Saúde afirmou apenas que, de 2012 a 2016, investiu R$ 5 bilhões em custeio dos estabelecimentos da Raps (Rede de Atenção Psicossocial), que abrange diferentes tipos de serviços de saúde mental e acolhimento para todas as espécies de drogas, e não apenas o crack. Ou seja, nesta conta estão incluídos desde o atendimento a um alcoólatra até um dependente químico de crack. Outros R$ 124 milhões foram destinados para custeio dos consultórios de rua.

Humberto Viana, que até o final de maio permanecia no cargo de titular da Senad (Secretaria Nacional Antidrogas), também foi procurado para falar sobre o assunto. Mas sua assessoria de imprensa apontou a "transição da pasta" para negar o pedido de entrevista. Osmar Serraglio (PMDB-PR) cedeu o posto no Ministério da Justiça para Torquato Jardim (ex-Ministério da Transparência).

Procurado, o ministro da Saúde na gestão Dilma, Alexandre Padilha, discorda que o programa teve problemas desde o seu início, conforme indica a Federação Nacional dos Municípios.

Ele cita exemplos que considera exitosos, tais como o "De Braços Abertos", da gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), em que, segundo contabiliza, houve "redução de 88% no consumo médio da droga e 84% em tratamento de outros problemas de saúde".

Padilha também nega que o programa tenha contingenciado verbas. Ele culpa os municípios. "Com relação aos recursos, é importante esclarecer que a execução não tem a ver com contingenciamento, já que para a saúde os recursos nunca são contingenciados. O que existia é uma dificuldade dos Estados e municípios de elaborar projetos, contratar profissionais, e os recursos só eram liberados de acordo com essa execução", afirma.

Imagem aérea da cracolândia, em São Paulo, em 18 de janeiro de 2017, um dia após enfrentamento entre PMs e dependentes químicos Imagem: Felipe Rau/Estadão Conteúdo

Cracolândia em São Paulo

Em São Paulo, a gestão do prefeito João Doria (PSDB) informou que não recuará em sua política na cracolândia. Questionada sobre quais recursos obteve do governo federal, informou que recebeu, em 2016, R$ 8,2 milhões para leitos de saúde mental, unidades de acolhimento e para os CapsAD (centros de atenção psicossocial álcool e drogas). Neste ano, para esses mesmos trabalhos, foram enviados R$ 3,6 milhões pelo Ministério da Saúde.

Doria tem sofrido críticas do Ministério Público e de ONGs por conta da maneira como tem tentado desmanchar a cracolândia na região da Luz. Após uma ação da Polícia Militar e da GCM (Guarda Civil Metropolitana), ocorrida no dia 21, o "fluxo" migrou da rua Helvétia para a praça Princesa Isabel, sem acabar com o consumo nem com o tráfico na região.

Até 2016, o programa “Crack, É Possível Vencer” enviou um ônibus, quatro carros, quatro motos e 77 tasers (armas de choque).

A prefeitura informou ainda que as secretarias municipais e estaduais estão “trabalhando de modo coordenado e estruturando um diálogo com órgãos federais para potenciais parcerias”.

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