'Pulverizadas, repressivas e insuficientes': Entidades criticam ações federais anticrack
Entidades que lidam diretamente com a questão do crack no Brasil alertam que os programas federais estão esvaziados, são apenas pontuais e impedem um real combate ao avanço da droga e um adequado tratamento aos dependentes químicos. As principais críticas de entidades diversas, que vão da Federação Nacional dos Municípios ao Conselho Federal de Serviço Social, passando pelas associações de Psiquiatria e a Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas, indicam falhas na repressão ao tráfico, cuidado, acolhimento e reinserção, estes pilares fundamentais do programa.
Apesar de ser um problema que flagela o país há mais de duas décadas, o primeiro grande projeto anticrack foi anunciado pelo governo federal em 2010, último ano da gestão do ex-presidente Lula (PT). Até então, a questão do crack não era alvo de programa específico. À época, dos R$ 430 milhões anunciados para criação de propostas, apenas 30% foram utilizados.
Mais tarde, no primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), foi lançado o programa "Crack, É Possível Vencer", que consistia em aportes de R$ 4 bilhões. Destes, apenas R$ 3,5 bilhões foram reservados e, ao final, só R$ 1,7 bilhão foi gasto de fato. Metade disso, segundo levantamento da FNM (Federação Nacional dos Municípios), foi usada para capacitação de pessoal.
Além desses recursos, o Funad (Fundo Nacional Antidrogas) tinha uma reserva de R$ 1,7 bilhão. Porém, 80% do valor não foi liberado. A quantia foi usada pelo governo federal para fazer caixa, segundo parecer técnico da FNM.
Se a avaliação das entidades era de insipiência nas gestões Lula e Dilma, o governo Michel Temer (PMDB) recebe críticas ainda mais firmes. "Hoje em dia não existe um trabalho específico. Existem ações pulverizadas e não coordenadas, que não fazem frente à necessidade de uma política nacional de prevenção", segundo o presidente da federação dos municípios, Paulo Ziulkosk.
Rubens Adorno, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e também presidente da Abramd (Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas), ataca uma dessas ações pulverizadas, o Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência). "Temos escatologias político-ideológicas como o Proerd, que me parece uma cópia da política de guerra às drogas dos EUA e tem, na sua proposta, talvez resquícios e herança do governo militar", afirma.
Adorno sustenta essa afirmação a partir da conclusão de que o “fenômeno drogas” é algo sensível à sociedade e, devido a isso, “as políticas são apenas setoriais, acabando por expressar a tendência política vigente no país”.
Ainda segundo Adorno, o governo federal sempre viveu uma contradição, já que mantinha programas de redução de danos, oriundos de propostas de movimentos sociais, e, por outro lado, sofria pressões de grupos conservadores --tais como os das bancadas evangélica e católica na Câmara dos Deputados--, ao criar o "Crack, É Possível Vencer".
"Foi a resposta do governo federal a essas pressões, alocando quantia razoável de recursos para financiar programas locais", diz Adorno.
“Higienismo social praticado no século 19”
O programa "Crack, É Possível Vencer" prioriza ações em municípios com mais de 200 mil habitantes. Ele foi lançado em 2010, logo após um estudo conjunto da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) com a Senad apontar que existiam no país 29 cracolândias espalhadas por 17 Estados. À época, eram 2 milhões os usuários da droga no país.
Sua essência consiste num tripé composto por prevenção, cuidado e segurança. Além de criar rede de atendimento e acolhimento, também fornecia veículos para monitoramento de concentrações de tráfico e uso de drogas.
Entre outros veículos, foram entregues aos municípios um total de 197 ônibus equipados com câmeras, monitores, frigobar e outros dispositivos para que as equipes pudessem monitorar os locais onde eles eram estacionados. Destes, 54 (mais de um quarto) tiveram problemas e foram encostados, segundo um balanço da Federação Nacional dos Municípios feito em 2016.
Solange Moreira, diretora do Cfess (Conselho Federal de Serviço Social), afirma que o conselho fez duras críticas ao programa desde a época de seu lançamento. “Isso porque o mesmo, apesar das três vertentes que propõe (cuidado, prevenção e autoridade), tem focado na autoridade, ou seja, na linha repressiva e violenta, deixando os outros dois eixos em segundo plano”, afirma.
“Em nome de uma ‘segurança’, grupos populacionais estão sendo retirados dos centros urbanos e levados para depósitos de pessoas; residências são invadidas, pessoas são recolhidas, dentre outras situações de violação de direitos, como o recente caso da região da Luz em São Paulo, denominada pela imprensa como ‘cracolândia’”, critica Solange.
O que fica explícito, segundo ela denomina, “é a retomada do higienismo social praticado no século 19, hoje revestido de acolhimento, que se traduz em recolhimento compulsório”.
A médica Ana Cecília Marques, coordenadora da Comissão de Dependência Química da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), afirma que a entidade se debruça sobre a questão desde que o crack começou a ser discutido com mais frequência no país, no início dos anos 2000. À época foi elaborado um guia a ser distribuído em Caps (Centros de Atenção Psicossocial). Ele é o resultado de estudos científicos a respeito de como lidar com a questão e integra o projeto “Diretrizes”, da AMB (Associação Médica Brasileira).
Ela afirmou que a capacitação dos profissionais demorou para começar e diz que as ações são apenas pontuais. “Sabemos muito pouco para onde foi o dinheiro. Eu não vi nada disso [programa anticrack] acontecer para valer. Precisa ser permanente e não pontual”, afirma.
Ana afirma que a vertente de só tratar quem está nas ruas é falha. “Nós não vamos acabar com as drogas. Não adianta ter tratamento só para quem está nas ruas. Tem sim que haver repressão [aos traficantes]. Do jeito que a coisa está, é o mesmo que oferecer um doce a um diabético. Ele vai ficar na fissura. É o que ocorre na cracolândia [em SP], onde as tendas estão sendo montadas perto de onde existe uma ‘feira’ de drogas”, afirma.
A coordenadora da ABP ainda afirma que são poucos os médicos especializados em tratamento aos dependentes químicos nos centros de atenção psicossocial e serviços congêneres. “É multiprofissional [o atendimento]. É para todos os profissionais, entretanto, se não tiver médico, não é tratamento de qualquer tipo de droga”, afirma.
Internação involuntária
A internação involuntária --quando o dependente é levado para o serviço com o consentimento da família-- ou a compulsória --determinada pela Justiça-- divide o Conselho Federal de Serviço Social e a coordenadora da Associação Brasileira de Psiquiatria.
Para a assistente social Solange Moreira, do Conselho Federal de Serviço Social, esses tipos de tratamento são "proibizantes, medicalizantes e punitivos de usuários de drogas". Para a entidade, o tratamento adequado seria os oferecidos nos serviços especializados e usando métodos tais como o de redução de danos.
A psiquiatra Ana tem opinião diferente e diz ser a favor das duas. “Cada caso é um caso. Isso integra as diretrizes de tratamento. Depende da gravidade da situação”, avalia.
Saúde mental
Procurado, o governo Temer não informou qual é a verba específica para o combate ao crack no país. Em nota, o Ministério da Saúde afirmou apenas que, de 2012 a 2016, investiu R$ 5 bilhões em custeio dos estabelecimentos da Raps (Rede de Atenção Psicossocial), que abrange diferentes tipos de serviços de saúde mental e acolhimento para todas as espécies de drogas, e não apenas o crack. Ou seja, nesta conta estão incluídos desde o atendimento a um alcoólatra até um dependente químico de crack. Outros R$ 124 milhões foram destinados para custeio dos consultórios de rua.
Humberto Viana, que até o final de maio permanecia no cargo de titular da Senad (Secretaria Nacional Antidrogas), também foi procurado para falar sobre o assunto. Mas sua assessoria de imprensa apontou a "transição da pasta" para negar o pedido de entrevista. Osmar Serraglio (PMDB-PR) cedeu o posto no Ministério da Justiça para Torquato Jardim (ex-Ministério da Transparência).
Procurado, o ministro da Saúde na gestão Dilma, Alexandre Padilha, discorda que o programa teve problemas desde o seu início, conforme indica a Federação Nacional dos Municípios.
Ele cita exemplos que considera exitosos, tais como o "De Braços Abertos", da gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), em que, segundo contabiliza, houve "redução de 88% no consumo médio da droga e 84% em tratamento de outros problemas de saúde".
Padilha também nega que o programa tenha contingenciado verbas. Ele culpa os municípios. "Com relação aos recursos, é importante esclarecer que a execução não tem a ver com contingenciamento, já que para a saúde os recursos nunca são contingenciados. O que existia é uma dificuldade dos Estados e municípios de elaborar projetos, contratar profissionais, e os recursos só eram liberados de acordo com essa execução", afirma.
Cracolândia em São Paulo
Em São Paulo, a gestão do prefeito João Doria (PSDB) informou que não recuará em sua política na cracolândia. Questionada sobre quais recursos obteve do governo federal, informou que recebeu, em 2016, R$ 8,2 milhões para leitos de saúde mental, unidades de acolhimento e para os CapsAD (centros de atenção psicossocial álcool e drogas). Neste ano, para esses mesmos trabalhos, foram enviados R$ 3,6 milhões pelo Ministério da Saúde.
Doria tem sofrido críticas do Ministério Público e de ONGs por conta da maneira como tem tentado desmanchar a cracolândia na região da Luz. Após uma ação da Polícia Militar e da GCM (Guarda Civil Metropolitana), ocorrida no dia 21, o "fluxo" migrou da rua Helvétia para a praça Princesa Isabel, sem acabar com o consumo nem com o tráfico na região.
Até 2016, o programa “Crack, É Possível Vencer” enviou um ônibus, quatro carros, quatro motos e 77 tasers (armas de choque).
A prefeitura informou ainda que as secretarias municipais e estaduais estão “trabalhando de modo coordenado e estruturando um diálogo com órgãos federais para potenciais parcerias”.
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