Dona de bordel vira tema de estudo em universidade federal: "Caridosa e odiada"
Habitualmente, as quartas-feiras são tímidas no bordel de Cabeluda, em Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano situada a 110 km de Salvador. Mas, no dia 5 de julho, o movimento foi fora do normal.
Enquanto um homem saía de um dos quartos, ainda se arrumando, muitas outras pessoas iam entrando, até não caber mais ninguém no local. A maioria carregava um smartphone na mão, registrando o que podia.
Cabeluda, que é a dona e dá nome ao estabelecimento, estava toda produzida, com roupas novas e de cabelos grisalhos bem penteados, cercada de pessoas queridas. Afinal, para a cafetina de 73 anos, era um momento especial: ela e o mais famoso bordel da região, há mais de 40 anos em atividade, entrariam na UFRB (Universidade Federal do Recôncavo Baiano).
Não como aluna nem como funcionária, mas como tema da dissertação de mestrado em ciências sociais da historiadora e pesquisadora baiana Gleysa Teixeira Siqueira.
O local, onde doutores da academia avaliavam o projeto de mestrado, foi por décadas alvo do amor e da cólera da sociedade de Cachoeira, cujo início do povoamento remonta a 1531.
A dissertação "Uma História de Cabeluda: Mulher, Mãe e Cafetina" foi a primeira defendida fora dos muros da universidade, criada em 2005 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Alheia às fragilidades da idade, Cabeluda ficou o tempo todo em pé, ao lado de Teixeira, observando o que falavam sobre ela e sua casa, frequentada não só por quem deseja sexo, mas também amizades.
Mulher de pouca leitura, a cafetina demonstra satisfação no que vê e ouve por meio de expressões faciais, de onde brota um sorriso sincero.
Durante a pesquisa, baseada no método de história oral, a futura mestra coletou depoimentos de parentes, amigos, vizinhos, autoridades, clientes, atuais e ex-profissionais do sexo e da própria Cabeluda, cujo apelido decorre dos pelos que ela tem no corpo.
Aos parentes, Cabeluda diz que não esperava tanta gente nem repercussão na mídia e se preocupa em como seus irmãos, que reviu recentemente, após 50 anos separados, vão absorver a notícia sobre o que fez durante todo esse tempo no "brega".
Brega é um termo regional no Nordeste que significa boate, casa noturna ou de prostituição. Também é como Cabeluda e suas moças reconhecem o local onde habitam, trabalham, trocam experiências de vida e possuem laços sociais em comum, fazendo daquele espaço um território.
Casa de tolerância, prostíbulo, puteiro e cabaré são sinônimos que muitas vezes carregam em si a carga do preconceito e da marginalização de pessoas que escolheram explorar o próprio corpo como forma de ganhar a vida.
Usar o termo negativo para torná-lo motivo de orgulho
"Apesar de não ser considerado assunto de interesse da política e da cultura, o brega faz parte da cultura local. O termo local é brega. Na antropologia, a gente valoriza como as pessoas chamam o modo como se reconhecem", disse o antropólogo e doutor em ciências sociais Osmundo Santos de Araújo Pinho, orientador da pesquisa sobre Cabeluda.
"Ativistas, como Gabriela Leite, falam delas como putas. Grupos estigmatizados buscam assumir o termo usado como ofensa para positivá-los. É como o negro, que hoje tem motivo de orgulho em ser chamado assim", completou.
O professor, que teve a ideia de a dissertação ser defendida no brega de Cabeluda, observou que o trabalho serviu para mostrar a ambiguidade reinante ainda na sociedade quando se fala em sexualidade.
"É visto como algo marginal, obsceno, mas ao mesmo tempo tem um reconhecimento e respeitabilidade, algo muito típico do Brasil. Ao mesmo tempo em que as putas são odiadas pelas mães de famílias, elas têm a sua importância social reconhecida", disse.
Diversas pessoas de Cachoeira, por exemplo, direcionam elogios a Cabeluda por ela ser uma pessoa generosa, que nunca negou aos outros um prato de comida ou pedido de ajuda financeira em momentos de dificuldade.
Casada aos 13 anos, agredida e infeliz
A distância da família ocorreu cedo: Cabeluda viu-se obrigada a se casar aos 13 anos com um homem mais velho e de quem apanhava.
Um dia se cansou da vida que não tinha e resolveu fugir de Itabuna (sul da Bahia), terra natal do escritor Jorge Amado, que imortalizou em suas obras personagens populares como Gabriela, Tereza Batista, Dona Flor e Tieta, marcadas pela sexualidade e pela luta contra o machismo e a repressão social. A história dessas personagens possui traços em comum com a de Cabeluda, que deixou a cidade onde nasceu e se criou com pouco mais de 20 anos, sem levar consigo roupas ou documentos.
Primeiro, foi para Feira de Santana e depois aportou em Cachoeira, município de 35 mil habitantes banhado pelo rio Paraguaçu.
Encontrou uma cidade cuja economia estava em decadência, devido a construções de estradas de rodagem e de ferrovias, tirando o local da rota de escoamento da produção agrícola.
Por séculos, o porto de Cachoeira foi o principal ponto de escoamento para a Europa de toda a produção agrícola regional, principalmente focada em cana de açúcar e tabaco.
Durante o apogeu econômico, foram construídos os cerca de 670 prédios de tendência neoclássica, hoje tombados pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que deram à cidade o status de "monumento nacional".
Uma das heranças coloniais de Cachoeira, que foi elevada à cidade em 13 de março de 1837, por decreto imperial, é a religiosidade: são 50 terreiros de candomblé, além de igrejas católicas diversas.
Quando Cabeluda chegou a Cachoeira, na zona portuária havia resquícios dos tempos áureos, da boêmia, com diversos bares e bregas próximos ao local.
Eles eram frequentados, sobretudo por viajantes e moradores da vizinha São Félix, que fica do outro lado do rio, sobre a qual está a ponte Dom Pedro 2º, construída na época do Império e uma das poucas no Brasil a ter a sua estrutura apenas em ferro (importado da Inglaterra) e madeira.
Um dos bregas mais famosos era conhecido como Guarani e também funcionava como casa de hospedagem. Foi onde Cabeluda buscou guarita. Outro que tinha clientela certa era o de Nenzinha, ambos situados na "rua do brega".
Cabeluda ficou no Guarani por pouco tempo. Com ajuda de uma amiga, foi para a rua Tavares, próxima à zona portuária, para abrir o negócio dela --atuava como profissional do sexo e cafetina ao mesmo tempo.
"Havia diversos bregas na cidade, aos poucos eles foram sumindo por causa da queda no movimento, mas o de Cabeluda sobreviveu e hoje faz concorrência com outros bregas menos famosos", conta a pesquisadora Gleysa Teixeira.
"Menina direita não podia andar na rua do brega"
Assim como toda criança nascida nos últimos 40 anos em Cachoeira, Gleysa, 33, cresceu ouvindo conselhos para nunca chegar perto da rua do brega --e ainda mais de Cabeluda.
"Quando eu era pequena, tinha medo de passar pela rua do brega por causa do imaginário social, da estigmatização do lugar. Sempre houve um discurso moralista contra o local, de que menina direita não pode andar lá", conta Gleysa.
A ideia de pesquisar sobre a vida de Cabeluda veio ainda na graduação em história pela UFRB, quando o foco era sobre gênero feminino e classe trabalhadora. Foi amadurecida na especialização e posteriormente no mestrado.
"A possibilidade de estudar a Cabeluda veio com o professor Antonio Liberac Simões Pires, meu primeiro orientador num projeto de pesquisa. Ele me perguntou se eu teria coragem e encarei o desafio de frente", lembra a pesquisadora.
O brega de Cabeluda, destaca Gleysa, representa um símbolo de prostituição de Cachoeira, sendo a única casa existente nos moldes antigos, onde a dona do local lucra apenas com o aluguel do quarto, sem fazer a intermediação entre o cliente e a profissional do sexo.
O movimento intenso é entre as noites de quinta e domingo, quando moças de outras cidades da região vão para lá. A relação entre a clientela e as profissionais é livre. O programa varia de R$ 30 a R$ 50, por meia hora. O aluguel do quarto, independentemente do valor do programa, custa R$ 10.
O único problema é quando está cheio, pois o brega tem apenas três cômodos e há dias em que estão na casa até 15 moças --no dia da defesa da dissertação havia cinco delas presentes no local. O estudo de Gleysa abordou também o empoderamento feminino e o patriarcado na sociedade cachoeirana, marcada ainda hoje pelo pensamento colonial.
No trabalho, a pesquisadora diz ter desconstruído a ideia que sempre ouviu na infância, de que Cabeluda seria um problema social. "Ela é muito reconhecida pela sociedade, sobretudo pelas obras de caridade que realiza. Ela sempre ajudou as pessoas, teve uma vida discreta, nunca fez o mal para ninguém", afirmou.
Preconceito, caridade e reaproximação com a família
Cabeluda, além das três filhas legítimas, acolheu outros oito meninos, nascidos de mulheres que chegavam ao brega, saíam do trabalho e apareciam com as crianças, que ficavam aos cuidados dela.
Uma das filhas de Cabeluda é Natalícia Santana Mota. Com 43 anos, é a mais velha. Seu depoimento foi um dos mais marcantes da pesquisa de Gleysa Teixeira.
Ao UOL, ela relatou o preconceito sofrido na adolescência por conta de a mãe ter um brega: "Eu estudava numa escola paroquial, tinha 16 anos. Um dia à tarde fui merendar na casa de minha mãe com uma colega minha. Quando voltamos para a sala de aula, a professora perguntou onde a menina estava e ela falou que tinha ido merendar comigo. A professora, então, falou que no lugar que ela foi só tinha gente que não prestava. Abaixei a cabeça e comecei a chorar, nunca me esqueço disso".
Em outra situação, ela estava andando na rua com uma amiga que ia fazer primeira comunhão na Igreja Católica: "A mãe dela nos viu e disse bem alto, na frente de um monte de gente, que não queria a filha dela andando com filha de prostituta". "Eu sofri muito, vivia só, não tinha amizades. Quando fazia amizades e depois dizia que minha mãe era dona do brega, se afastavam logo de mim."
Natalícia estava na plateia no dia da defesa da dissertação, ocorrida poucos meses depois de Cabeluda ter revisto dois irmãos deixados em Itabuna.
A circunstância em que o encontro ocorreu foi por motivo de doença. Cabeluda havia sofrido um infarto e precisou ser internada às pressas numa UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Só que ela não tinha documentos de identificação.
Com ajuda de amigos, o hospital aceitou que ela ficasse em observação até que os documentos fossem providenciados, o que ocorreu dias depois de Natalícia ir até Itabuna em busca de pistas dos familiares.
Conseguiu encontrá-los após expor o problema em uma rádio local. Com os documentos, Cabeluda passou alguns dias na UTI e foi liberada. O problema no miocárdio era agravado pelo consumo de cigarro.
Cabeluda parou de fumar e foi ao encontro dos irmãos. As conversas que tiveram não foram bem explicadas por Natalícia --ela preferiu não comentar nada sem autorização de Cabeluda, que não quis dar entrevista ao UOL. Pelo mesmo motivo, Teixeira e Natalícia preferiram não falar o nome verdadeiro dela.
Professor defende a importância da apresentação no brega
Sobre a escolha do brega para ser o local da defesa, o professor justificou: "Na antropologia contemporânea, não podemos tratar os interlocutores da pesquisa de campo como meros objetos inertes, passivos ou apassivados". "Apresentar a dissertação no brega teve como um dos objetivos --talvez o mais importante-- demonstrar e discutir o resultado da pesquisa frente aos interlocutores que outrora chamávamos de objetos de pesquisa."
A atitude, para o professor, "revela a importância de aproximarmos a universidade pública da comunidade na qual ela está inserida, e notadamente de setores excluídos, como as mulheres que trabalham no negócio do sexo. Então, nesse sentido, essa foi a nossa proposta despretensiosa, mas que acabou ganhando proporção maior do que esperávamos".
A UFRB informou que a escolha de locais de defesa de dissertação é de livre escolha dos pesquisadores envolvidos.
Já a Polícia Civil declarou que a última batida que fez no brega de Cabeluda foi em 2011, devido à procura por suspeitos de tráfico de drogas que estariam frequentando o local. De lá para cá, não houve mais registros.
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