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Livro esmiúça massacre de guerrilheiros traídos por Cabo Anselmo na ditadura

O agente duplo José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, em foto de abril de 1972 - Jorge Barrett Viedma/Arquivo Pessoal
O agente duplo José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, em foto de abril de 1972 Imagem: Jorge Barrett Viedma/Arquivo Pessoal

Flávio Costa

Do UOL, em São Paulo

30/08/2017 04h00

Antes de ser assassinada com uma coronhada na cabeça, a tcheca Pauline Reichstul, integrante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), dançou de mãos dadas, sem saber, com o homem responsável pela operação que resultou em sua morte: o delegado Sergio Fernando Paranhos Fleury, um dos principais agentes de repressão da ditadura brasileira.

Passaram-se semanas entre a ciranda na praia do Janga, no Grande Recife, e o cenário de massacre montado no sítio na cidade de Abreu e Lima (PE), onde o corpo de Pauline e outros companheiros de luta armada foram encontrados crivados de bala. Fleury chegou até os guerrilheiros por meio de um agente duplo: o marinheiro José Anselmo dos Santos, conhecido como Cabo Anselmo.

Lançado na última terça-feira (29), o livro "O Massacre da Granja de São Bento", de autoria do jornalista pernambucano Luiz Felipe Campos, traz informações inéditas a respeito da operação que praticamente jogou por terra as ações da guerrilha urbana no país.

A obra reconstitui, por meio de documentos e relatos de personagens da época, como o agente duplo Cabo Anselmo, o "Kimble" para os órgãos de repressão, atraiu para Pernambuco o maior número possível de militantes para a emboscada executada por Fleury. O jornalista pesquisou o assunto durante cinco anos no Brasil, no Chile, no Uruguai e na Argentina e entrevistou mais de 50 pessoas para escrever o livro.

Cabo Anselmo 2 - Divulgação/Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Camara - Divulgação/Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Camara
Casa onde os militantes da VPR foram mortos no Grande Recife
Imagem: Divulgação/Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Camara
No massacre de 8 de janeiro de 1973, seis militantes da VPR foram assassinados por agentes da ditadura, por meio da colaboração direta de Cabo Anselmo: os corpos de Pauline Reichstul, Soledad Barrett (companheira do próprio colaborador), Jarbas Pereira Marques, Eudaldo Gomes e José Manoel da Silva foram encontrados com um total de 32 tiros, sendo 14 na cabeça. Eles haviam sido presos um dia antes de os corpos serem encontrados. À época, jornais noticiaram a ocorrência de um tiroteio. 

"A perícia se limitou a descrever a cena, dizendo quantos tiros cada um tinha levado e quantas cápsulas o revólver de cada um dos militantes tinha disparado", afirma Campos. "Foi um teatro com armas plantadas para simular a ocorrência de um tiroteio, quando na verdade o que houve foi uma execução."

O corpo de outra vítima, Evaldo Luz, recebeu 20 disparos e foi achado na zona rural de Olinda. 

Quem é Cabo Anselmo

Cabo Anselmo ficou conhecido por protagonizar uma revolta de marinheiros em março de 1964 --episódio que foi um dos pretextos usados pelos militares para o golpe de Estado daquele ano.

Em maio de 2012, reportagem da "Folha de S. Paulo" mostrou que documentos do serviço de inteligência da Aeronáutica indicam que ele já era informante desde o começo do regime militar

Entre as organizações de esquerda, já circulava a desconfiança de que ele havia mudado de lado, antes mesmo de ser preso por Fleury em São Paulo, em maio de 1971. "Esta data é um marco porque, a partir daí, praticamente todos os militantes que se encontraram com Anselmo foram presos ou mortos pela repressão", afirma Campos.

Seis meses depois desta detenção, já como "agente Kimble", Anselmo viajou para Santiago do Chile para espionar os companheiros de luta armada. Voltou ao Brasil com um diário de viagem denominado "Relatório de Paquera", que foi entregue a Fleury. Em entrevistas a órgãos de imprensa, ele mesmo estimou em 200 pessoas o número de militantes que entregou à ditadura.

Cabo Anselmo 3 - Henri Philippe Reichstul/Arquivo Pessoal - Henri Philippe Reichstul/Arquivo Pessoal
A militante da VPR Pauline Reichstul, morta no "Massacre da Granja de São Bento"
Imagem: Henri Philippe Reichstul/Arquivo Pessoal

"Colaborei com o Estado legal, com a pátria, com a nação, consciente de que a Ditadura do Proletariado ou qualquer ditadura é contrária à liberdade. A motivação maior foram valores cristãos incutidos na infância", afirma Cabo Anselmo, em entrevista ao UOL.

Massacre premeditado

Campos escreve que, no primeiro semestre de 1972, "praticamente todos os exilados da VPR no exterior já sabiam ou pelo menos desconfiavam que Anselmo era um agente duplo a serviço do Dops (Departamento de Ordem Polícia e Social), "o principal órgão de repressão da ditadura militar".

Porém, ele conseguiu convencer o líder da VPR à época, Onofre Pinto, exilado no Chile, a levar a guerrilha para o Nordeste, tendo em vista o desbaratamento das organizações de esquerda em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Cabo Anselmo 1 - Luiz Felipe Campos - Luiz Felipe Campos
Cabo Anselmo redigiu um relatório de sua viagem a Santiago, em 1971
Imagem: Luiz Felipe Campos
A emboscada para onde foram atraídos os militantes da VPR começou a ser preparada antes mesmo da viagem a Santiago do Chile, afirma Campos.

"Anselmo estava tão certo de que conseguiria convencer Onofre Pinto, que meses antes já estivera em Olinda e alugara uma casa em Bairro Novo, distante dois quilômetros do centro histórico da cidade, onde chegou a morar por tempo suficiente para cultivar amizades, sem que jamais fosse identificado como o Cabo Anselmo." 

No livro, o agente duplo é descrito como um sedutor, com alto poder de convencimento: "As entrevistas mostram como ele é articulado. É claro que dá para notar também que ele é um mentiroso compulsivo, em toda nova entrevista ele apresenta uma versão diferente sobre os mesmos fatos".

"Mas não se deve somente a isso o sucesso dele como agente duplo. Na época do massacre, a guerrilha urbana estava praticamente extinta. Praticamente todo o pessoal da VPR estava exilado no Chile, em Cuba. Havia uma desconfiança enorme entre as organizações de esquerda", acrescenta o jornalista. "Anselmo só precisava convencer uma pessoa --que era Onofre Pinto-- e ele conseguiu."

Pedido negado

Logo após o massacre, Cabo Anselmo foi levado para São Paulo. Ele afirma ter pedido a Fleury que Soledad, sua companheira, fosse poupada, o que não ocorreu.

Jurado de morte por todas as organizações guerrilheiras, ele se submeteu a uma cirurgia plástica. Por causa da Lei da Anistia, Cabo Anselmo nunca foi julgado por sua colaboração à ditadura. 

Em maio de 2012, a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça negou o pedido de reparação do ex-marinheiro. "A Comissão foi integrada exclusivamente por pessoas filiadas à ideologia marxista. Foi uma 'ação entre amigos' privilegiando os militantes e ideólogos da ditadura comunista", afirma Cabo Anselmo.

O livro "Massacre da Granja de São Bento" também mostra a luta de parentes dos guerrilheiros mortos para restabelecer a verdade do que aconteceu em janeiro de 1973. Filha de Soledad Barrett Viedma, a companheira de Cabo Anselmo entregue por ele à repressão, e de outro militante também morto pela ditadura, José Maria Ferreira Araújo, a pedagoga e militantes de direitos humanos Ñasaindy Barrett de Araújo afirma que o caso é "uma ferida que ainda não cicatrizou".

"O Brasil ainda se recusa a encarar a verdade do que aconteceu durante o regime militar. Há muito ainda para ser revelado. Esse é um dos motivos para que a tortura e o extermínio por parte dos órgãos policiais ainda seja uma realidade tantos anos depois."

Quando a luta armada descobriu que Cabo Anselmo era um traidor

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