Topo

Uruguaio cruza 4.000 km de bike com seu cão e vira voluntário na cracolândia

O uruguaio Franka Gonzalez viaja pelo Brasil de bicicleta com seu cachorro Guri - André Lucas/UOL - André Lucas/UOL
Gonzalez é filho de brasileira com uruguaio e está no Brasil desde os anos 70
Imagem: André Lucas/UOL

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

29/10/2017 04h00

"Não existe vida se a gente não se ajuda". É esse o mantra que o uruguaio Franka Gonzalez, 59, tem seguido nos últimos dois meses ao longo de uma viagem que começou como uma fuga, mas se desenrolou em uma sequência de descobertas, desafios e superações. O percurso é feito desde Pelotas, no interior gaúcho, até o Ceará –pouco mais de 4 mil quilômetros percorridos em uma bicicleta velha e com uma carrocinha adaptada para transportar um cão de 14 anos.

O desdobramento mais recente da empreitada aconteceu esta semana, em São Paulo, onde, voluntariamente, Gonzalez cortou o cabelo de dezenas de usuários e pessoas em situação de rua na região da cracolândia, no centro da capital paulista.

Apesar da viagem, a história de Gonzalez com o Brasil não é exatamente nova. Filho de brasileira com uruguaio, veio para o país nos anos 1970 e começou a fazer cursos que o capacitassem a trabalhar como cabeleireiro. Fincou-se em cidades do interior do Rio Grande do Sul, onde se casou, teve duas filhas e uma neta. Mas uma separação em 2011 e a crise econômica no ano passado mexeram com a saúde a ponto de ele sentir necessidade de reavaliar prioridades e projetos de vida.

“Me sinto gaúcho. O interior do Rio Grande sempre foi meu chão. Mas com a crise do ano passado, vi meus concorrentes da vizinhança baixarem demais os preços do corte para aumentarem o movimento e não consegui fazer o mesmo: eu não podia me rebaixar e passar por cima da qualidade que o meu serviço sempre teve. Preferia cortar menos, cobrando os R$ 80 de sempre, que os R$ 25 que eles cobravam e viviam lotados”, diz.

O uruguaio Franka Gonzalez viaja pelo Brasil de bicicleta com seu cachorro Guri - André Lucas/UOL - André Lucas/UOL
Guri, um galgo inglês de 14 anos, foi resgatado em 2009 de um caçador de javalis
Imagem: André Lucas/UOL

No salão em Pelotas, alugava uma cadeira – os instrumentos, conta, sempre foram seus. Com o movimento fraco, e com o divórcio não superado, foi ao médico e teve diagnosticadas depressão e gastrite. Como a experiência no salão o tornara, também, uma espécie de terapeuta de todo tipo de cliente –“de madames a pessoas viciadas em drogas” --, buscou estudar sozinho sobre reiki e sobre sua aplicação em efeitos das drogas. Então, começou a ser chamado para conversar em comunidades terapêuticas destinadas ao tratamento de pessoas com o vício.

“Um desses convites veio logo depois de eu ter ido ao médico. Como era em outra cidade, peguei minha bicicleta, o Guri e fui pedalando. Aquilo me fez tão bem que no percurso mesmo decidi que não voltaria. Liguei para o dono da casa e para o dono da cadeira que alugava e acertei que as entregaria. Muita gente acha isso loucura, mas louco, para mim, é quem se submete a pagar dois aluguéis e se mata com isso”, compara. “O que eu queria era me encontrar comigo mesmo”.

O uruguaio Franka Gonzalez viaja pelo Brasil de bicicleta com seu cachorro Guri - André Lucas/UOL - André Lucas/UOL
O trajeto da dupla deve se encerrar no Ceará, em data ainda não definida
Imagem: André Lucas/UOL

Guri, o cão, foi resgatado de um caçador de javalis

O Guri a quem Gonzalez se refere é um cão da raça galgo inglês, de 14 anos, cheio de cicatrizes pelo corpo. O cabeleireiro conta que o resgatou em 2009 de um caçador de javalis; em troca, não o denunciou pelo maltrato ao animal. Ele vai na “carrocinha-garupa” e, segundo Gonzalez, não passa privações de comida nem por exercício físico extenuante.

“Ele come ração e também um pouco do que eu mesmo como. E vai na carrocinha –só o coloco para andar um ou dos quilômetros por dia, sempre na coleira, como forma de não torná-lo sedentário. É meu melhor amigo e, por ele, acabei tendo problemas até com algumas namoradas que não aceitavam que ele dormisse no mesmo quarto que eu”, ri.

Indagado sobre as dificuldades de uma viagem nessas condições --além da própria bicicleta, em si, há trechos de estrada sem acostamento e trechos de serra, íngremes --, o uruguaio relatou que os primeiros 600 km foram “uma luta com Deus, o tempo todo”.

“Eu não conseguia fazer aquela quantidade imensa de quilômetros em um trecho de serra entre Santa Catarina e Paraná, por exemplo. Subia o sétimo ou oitavo quilômetro quando, pela primeira vez, a estrada me fez ajoelhar e orar. Uns metros adiante, vi um caminhão-guincho passando; ele parou e me deu uma carona até a parte de cima”, recorda. “Pequenos milagres como esse foram me dando forças.”

R$ 80 no bolso e solidariedade no caminho

O uruguaio afirma ter saído de Pelotas com R$ 80 no bolso. No caminho, conta que, além de caronas como a do guincho, recebeu várias vezes doações de comida, água e até uma câmara de ar nova para um dos pneus da magrela –teve dias em que ele chegou a furar sete vezes, antes da troca.

Em uma das paradas para pouso, em uma cidade de pequeno porte, teve negado o pedido a um pastor para que montasse a barraca no terreno onde ficava a igreja. “Eu disse a ele: ‘Achei que tivesse batido na casa do meu Pai’. Aí percebi o quanto há para ser feito no sentido de ajudar o próximo. Recebi muita ajuda de caminhoneiro evangélico, fosse com marmita ou com mensagens de apoio. Um deles me disse, em uma dessas ocasiões: ‘Tem muito trabalho na estrada para ser feito, nem que seja uma prece’. Isso me deu uma certeza de que não havia trabalho a se fazer só ali”, diz.

Ainda em Pelotas, conversou com uma cliente, assistente social de São Paulo que estava a passeio por lá, sobre um sonho antigo de sair de Kombi pelo país. O veículo não deu certo, mas a viagem tanto acabou sendo feita, que Gonzalez ganhou pouso por alguns dias na casa dessa assistente e do marido dela, ambos residentes em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Enquanto isso, faz bicos para juntar uns trocados.

Foi na casa dessa nova amiga que o uruguaio conversou com a reportagem do UOL essa semana. “Em 37 anos como cabeleireiro, fui muitas vezes psicólogo de madame. Quanta mensagem eu posso passar a cada um que precisa mais que aquelas pessoas? Encontrei um sentido para a minha vida”, ele diz.

O uruguaio Franka Gonzalez viaja pelo Brasil de bicicleta com seu cachorro Guri  - André Lucas/UOL - André Lucas/UOL
Na última quinta (26), o urugaio cortou o cabelo de dezenas de pessoas na região da cracolândia, centro de SP
Imagem: André Lucas/UOL

A ação voluntária na cracolândia

Na capital paulista, Gonzalez viu a chance de ir até um lugar que sempre quis conhecer, mas que só tinha a oportunidade de ver pela TV: a cracolândia, maior ponto de consumo de drogas a céu aberto na cidade e palco recente de operações policiais que resultaram em uma sequência de deslocamentos e tentativas da Prefeitura de acabar com a concentração de usuários.

Ele esteve no local duas vezes essa semana. “Na primeira vez, chorei muito. A situação dessas pessoas é muito triste”, lamenta. Na segunda, com o instrumental a tiracolo, Gonzalez cortou o cabelo e fez a barba de dezenas de frequentadores de uma unidade do Atende, da Prefeitura. Pelo local, passam pessoas em situação de rua, egressas ou não da cracolândia, em busca de abrigo para a pernoite e alimentação durante o dia.

“É muito importante alguém ter um gesto desses com a gente. É uma forma de a gente ser lembrado por alguém mais que não apenas a família – no meu caso, apenas pelo meu pai”, avaliou o desempregado Tiago Moreno Santos, 36, que disse estar há quatro meses “limpo” do crack. A família dele é da Bahia.

“As pessoas olham para a gente e também não olham: ou têm preconceito, ou fingem que não existimos. Não tem explicação quando eu vejo ações como a desse cabeleireiro, aqui: são pessoas que não nos deixam desistir dos nossos sonhos”, explicou Luís Ricardo Silva, 24, que deixou Leme, no interior paulista, e veio para a cracolândia há quatro meses. “Eu quero largar isso aqui e ter, um dia, minha própria lanchonete.”

"É bonito" olhar sem desigualdade, diz usuária

Também usuária, “mas agora mais esporadicamente, e de cocaína”, segundo ela, Verônica Gomes da Silva, 29, agradeceu a ação voluntária de Gonzalez – ela era uma das poucas mulheres em uma fila dominada por homens. “Uma pessoa dessas é uma vitória na vida dela e de qualquer um que conviva com ela, porque é o tipo de gente que olha para os outros sem desigualdade, entende? É bonito, isso”, comparou. “Às vezes tratam o usuário da cracolândia com violência, à força, com arrogância, e não é isso que vai salvar ninguém aqui, moça. É gesto como o desse gringo que vai.”

A reportagem quis saber de Gonzalez o porquê do Ceará: é nesse Estado que nasceu o médico Bezerra de Menezes, conhecido, no século 19, como “médico dos pobres”, dadas as ações de caridade com pacientes que não podiam pagar pelas consultas. Ele leu sobre a história de Menezes e ficou impressionado. Mas o que fará quando chegar em solo cearense? “Isso eu só saberei lá.”