Para viúvas de pichadores mortos por PMs, absolvição pela Justiça é "segunda violência do Estado"
A auxiliar de limpeza Eliete Prestes, 32, soube por amigos, na quinta-feira (23), que os policiais militares acusados de matar o marido dela em 2014 haviam sido absolvidos pela Justiça de São Paulo sem ter sido designado um júri popular.
A decisão da juíza Débora Faitarone, da 1ª Vara do Júri, foi expedida um dia antes --mesmo dia em que Eliete acompanhava a exumação dos ossos no cemitério de Santo André, na Grande São Paulo. O Ministério Público diz que vai recorrer da decisão.
Marido de Eliete, o promotor de eventos Aílton dos Santos, 33, foi assassinado ao lado do amigo, o marmorista Alex Dalla Vecchia Costa, 32, em 31 de julho de 2014, quando tentavam pichar um prédio que invadiram na Mooca, zona leste de São Paulo.
Segundo a denúncia do Ministério Público, os PMs que atenderam o chamado do zelador do prédio levaram os dois rapazes para dentro de um apartamento, onde os executaram --com três tiros no peito cada um. Na versão dos policiais, os pichadores estavam no local para roubar. Amigos e parentes, no entanto, ponderam que pretendiam apenas pichar o prédio.
Acusados de homicídio duplamente qualificado, acabaram absolvidos pela juíza, que entendeu que eles agiram em legítima defesa.
“Fiquei muito chocada quando me disseram hoje [quinta] de manhã que a Justiça tinha absolvido esses policiais. Eu mal tinha me recuperado da exumação dos restos mortais do meu marido, um dia antes. É como se fosse uma segunda violência do Estado contra a gente, né?”
“Não sei como dizer à minha filha que não existe justiça para pobre”
A entrevista, por telefone, foi concedida em voz baixa. A explicação: Eliete mora sozinha com a filha de oito anos que teve com Santos. A menina tinha cinco anos quando o pai morreu.
“Por mais que ela saiba que o pai foi assassinado, não sei a maneira de contar para ela que não existe justiça para pobre. Eu, mesma, não acreditei quando me disseram dessa absolvição, porque tinha alguma esperança de que viesse uma condenação. É muito revoltante saber que tantos planos e sonhos que a nossa família tinha acabaram por conta da ação desses policiais –sem contar a saudade e a ausência que ficaram. O Aílton era um pai maravilhoso”, afirmou.
A ajudante de limpeza nega que o marido tivesse arma de fogo –já que os PMs relatam que houve troca de tiros, ainda que, dos cinco, apenas um deles tenha se ferido, sem gravidade. O exame de balística, usado na denúncia do Ministério Público, confirmou que esse disparo foi também feito por um dos policiais.
“Eu sabia com quem eu tinha casado. Demoramos seis anos para decidirmos ter uma filha, foi tudo planejado, mas também porque nos conhecíamos bem. Aílton gostava muito da pichação, mas havia parado e retornado fazia pouco tempo. Só que isso não o tornava um bandido –ele tinha dois empregos quando foi assassinado, por exemplo”, relatou. “Eu não achava legal a pichação, mas nunca entendi bem disso. Mas vejo as pessoas julgando, dizendo que ‘pichador tem que morrer’, e isso é muito difícil de ouvir: a pessoa só sabe a dor quando passa por isso”, definiu. “Porque a sociedade ainda acredita que os policiais existem para nos defender, né?”
“Mamãe, mataram o meu papai”
A ajudante de limpeza recorda que, à época, demorou alguns dias para contar à filha o que havia acontecido. Quando ouvia alguma notícia sobre “o caso dos pichadores”, levava a criança para o quarto. Até que um dia a menina, curiosa com a frequência da atitude, saiu e entendeu o que estava acontecendo.
“Ela viu a foto do pai na TV e me disse: ‘Mamãe, mataram o meu papai’. Sabe, isso não vai cicatrizar nunca, especialmente porque eu vejo o tempo passar e ela crescer, sem ele do lado. O pai do Ailton morreu dois meses depois, de infarto, vivia triste por causa do que aconteceu com o filho”, conta.
“A decisão dessa juíza foi desumana. O mínimo que nós, familiares, esperávamos, era que os PMs fossem julgados em um júri popular. Mas ainda tenho fé que isso possa ser revertido pelo Ministério Público”, concluiu.
Eliete se referiu ao comunicado do MP de que vai recorrer da absolvição de PMs.
Vendedora estava grávida quando marido foi morto
Hoje vendedora em uma rede de eletrodomésticos, Bruna Duarte Cardoso, 28, contou que não trabalhava à época em que o marido foi assassinado: cuidava de um dos filhos do casal, então com um pouco mais de um ano de idade, e estava grávida. A criança nasceria poucos meses depois. Marmorista, Costa tem mais quatro filhos de casamentos anteriores.
“A gente não podia jamais imaginar uma sentença dessas com tudo o que o DHPP [Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa] relatou no inquérito. Meu marido nunca teve arma, e o próprio exame de balística no PM ferido constatou que a munição era de arma policial. Tudo isso não teve validade nenhuma para a Justiça?”, questionou.
A vendedora relatou ainda que não consegue explicar para o filho mais velho, agora com quatro anos, o que aconteceu com o marido. “Ele é muito novinho, não vai entender. Mas um dia terei que contar para ele. É muito difícil... ele vê as outras crianças com pai e não aceita que o dele não está mais aqui”, lamenta.
Sobre pichação, Bruna afirma que o hobby do marido volta e meia era motivo de briga entre eles, já que ela, garante, não aceitava a prática. “Tanto que, no dia em que ele foi morto, ele saiu direto do trabalho e foi para aquele prédio, escondido de mim. Sempre achei essa forma de protesto que ele adotava inútil”, recorda.
“Mesmo assim, não tem justificativa para matar uma pessoa porque ela está pichando. E tem muito preconceito sobre isso, as pessoas julgam muito –mas e se o filho de uma delas crescer e se tornar pichador? Elas vão querer que eles também sejam mortos?”
A respeito da decisão judicial, Bruna reforçou a avaliação da outra colega, também viúva.
“Dói muito a violência que fizeram com o Alex, dói muito ver que os PMs respondiam o processo em liberdade, mas dói de novo a violência de uma absolvição dessas”, definiu. “Foi tudo em vão.”
MP vai recorrer de decisão nesta segunda; defesa de PMs comemora
Procurado pelo UOL desde a última quinta-feira (23), o promotor do caso, Tomas Ramadan, não quis conceder entrevista. Por nota encaminhada pela assessoria de imprensa do MP, informou que “entrará com recurso na próxima segunda-feira e protocolizará as razões do recurso dentro do prazo legal (8 dias).”
Para o escritório de advocacia Oliveira Campanini Associados, que fez a defesa dos PMs, a absolvição deles representou "mais uma importantíssima vitória da Justiça e da família policial militar". "Os militares, que foram presos por duas vezes no Presídio Militar Romão Gomes durante a apuração, agora podem voltar ao trabalho normal em prol da causa pública, uma vez que restou reconhecida a atuação em legítima defesa", disseram os advogados, por meio de nota.
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