'República' em SP acolhe jovens LGBT expulsos de casa pela família
“Você conhece alguém que foi expulso de casa por causa de sua orientação afetivo-sexual e identidade de gênero? Não existe nenhum LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros] que, se você perguntar isso, vai falar: ‘Não, não conheço’. Todo mundo conhece.”
A fala é do jornalista Iran Giusti, 28, criador do projeto Casa 1, um espaço na região central de São Paulo que acolhe jovens de 18 a 25 anos expulsos de suas casas justamente por esses motivos citados.
Essa história começa em 2015, quando Giusti fez uma postagem no Facebook oferecendo o sofá-cama do quarto e sala onde morava para pessoas com esse perfil e mulheres em situação de risco. O espaço livre era antes usado para locação no serviço Airbnb --o anfitrião diz adorar receber gente em casa--, mas suas contas trabalhando como jornalista equilibraram e ele então decidiu mudar o foco. Postou a mensagem que viralizou e, dois dias depois, tinha 50 pedidos de acolhida.
“A ideia inicial nunca foi virar tudo isso”, contou ele à reportagem, com quem conversou numa tarde de dezembro. Na época, foi recebendo uma pessoa por vez, durante dez meses. “Era outro momento, outra casa, outro projeto. Eu me empolguei, teve o financiamento coletivo e acabamos alugando a casa, que começou a funcionar em janeiro de 2017.”
Para isso, foram arrecadados R$ 112 mil. O financiamento recorrente, uma “mensalidade” de R$ 20 a R$ 150, ainda é a principal fonte de renda de projeto, que também faz parcerias com empresas. Um exemplo é a Pepsi, com a campanha “Rainbow” (arco-íris) do salgadinho Doritos, que arrecadou e doou R$ 107 mil à Casa 1.
Política de portas abertas
O sobrado fica no bairro da Bela Vista, onde um quarto grande, cheio de beliches, armários e com ares de república abriga até 20 pessoas simultaneamente. Eles podem morar lá por até três meses e, a cada semana, são recebidos em média 15 novos pedidos de acolhida. Quem chega à Casa 1 passa antes por uma triagem, que envolve entrevista e exames médicos. O recorte das pessoas atendidas acabou ficando principalmente em pessoas negras de baixa renda e baixa escolaridade.
Ainda no segundo andar ficam os banheiros, uma cozinha, uma lavanderia e um quadro que atribui as tarefas a serem cumpridas pelos moradores (de limpar o banheiro a lavar a louça do almoço). No andar de baixo, uma salinha abriga roupas e sapatos a serem entregues para moradores de rua na região --até quatro peças por semana para cada pessoa. Há também uma biblioteca e uma sala de convivência com pufes espalhados pelo chão.
A dois quarteirões fica um galpão, também pertencente ao projeto, onde são realizados cursos e atendimentos. É ali que Giusti mora e trabalha (hoje com foco das atividades voltado à Casa 1). No dia da entrevista, estavam no local sua mãe (que não o expulsou quando o filho revelou ser gay), Otávio (acolhido ainda na primeira casa e hoje voluntário) e três cachorros. Com frequência chega gente --pedindo, por exemplo, para imprimir currículos-- e ele explica à reportagem: “Nossa política é de portas abertas, então a toda hora vão interromper mesmo”.
“Não vai tirar esse chuchu?”
Neste primeiro ano foram acolhidas no local 74 pessoas. Elas recebem assistência médica, odontológica, psicológica, psiquiátrica e também de carreira --tudo com o auxílio dos 62 voluntários, muitos deles profissionais de saúde. “Temos um núcleo duro que estuda muito, conversa muito, quebra a cabeça e descobre junto. Porque eles [o público atendido] ainda estão em formação e há pouca gente que estuda jovens LGBT. Esses voluntários são muito bons e estão muito dispostos, por isso dá certo.”
Giusti dá uma ideia dos desafios enfrentados, situações que passam longe das respostas prontas. Pode chegar à casa uma transexual que nunca pensou em fazer cirurgia e ser bombardeada por outras: “Não vai fazer a barba? Tirar esse chuchu? Quando vai colocar bunda, peito?”, exemplifica. É preciso conversar, explicando para quem cobra que essas mudanças não fazem daquela pessoa uma mulher. E conversar também com a pessoa que não conhece essas opções, apontando outras possibilidades de vivência dos transexuais.
Por essas e por muitas outras, aos sábados é realizada uma roda de conversa acompanhada por psicólogos e apelidada de “casos de família”: é a hora de os moradores passarem tudo a limpo para facilitar a convivência entre eles. Quando saem da casa --onde são recorrentes os termos ligados ao programa “BBB”, como “paredão”--, podem continuar frequentando várias das atividades, como fazem 80% dos ex-moradores.
Cerca de 10% daqueles que deixam o local passam a dormir em centros de acolhida. Giusti estima que 40% alugam quartos ou vivem em pensões, 30% vão para cortiços e 10% voltam para o espaço familiar --o atendimento pode incluir parentes, se o morador assim quiser. Os 10% restantes têm paradeiro desconhecido.
Depois de cinco expulsões, uma vida com propósito
Em junho deste ano Uriel Cabral, 20, foi expulso pela quinta vez da casa onde vivia com a família no Rio de Janeiro --a atitude da mãe teria sido influenciada pelo padrasto. Uriel pediu ajuda aos conhecidos via Facebook, dizendo não ter para onde ir, e acabou conhecendo a Casa 1. Mudou-se para São Paulo e morou durante um mês e meio no imóvel do projeto.
Hoje dorme em um CTA (Centro Temporário de Acolhimento) da prefeitura, trabalha em uma grande rede de cinemas e, no tempo livre, volta sempre à sua primeira casa paulistana --que considera "um divisor de águas" em sua vida. No dia do encontro com a reportagem, ele estava no centro de convivência da Casa 1 esperando a entrega de um celular que comprou online.
A casa só vai te ajudar se você estiver disposto a ser ajudado. Quando saí, comecei a frequentar mais o centro cultural, fazer curso de inglês, aulas de canto, oficina de teatro, de estêncil. Tento usufruir tudo o que ela me oferece
Uriel Cabral, ex-morador
Ele já havia trabalhado, mas “no truque”, sem carteira assinada. Diz que hoje tem perspectivas e planeja cursar uma faculdade de design, para depois dar aulas. “Faculdade pública. Vou estudar muito, porque me recuso a dar dinheiro para uma particular.”
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