Sem bonés nem celular, escola apoia futuro de centenas de meninos carentes
A maioria chega a pé ou de bicicleta. Outros desembarcam de ônibus, de carona em carros antigos ou na garupa da motocicleta do pai.
São 7h no extremo norte de Campo Grande. Mais especificamente no Jardim Anache, um dos bairros mais carentes do município.
Antes de iniciar suas atividades, meninas e meninos se perfilam, obedecem ao comando de um instrutor, ficam em posição de sentido e cantam o Hino Nacional.
A partir das 13h, uma nova turma repete o ritual na Cidade dos Meninos, uma instituição privada de caráter social, sem fins lucrativos, reconhecida de Utilidade Pública Municipal, Estadual e Federal --o que dá direito a isenções de vários impostos.
Ao todo, 305 adolescentes são acolhidos diariamente pela ONG, onde recebem cursos profissionalizantes, reforço escolar de português e matemática e aulas de cidadania. Todos com idades entre 14 e 18 anos. O serviço é 100% gratuito.
Da portaria para dentro dos 56 hectares (560 mil m² ou o equivalente a 56 campos de futebol aproximadamente) da Cidade dos Meninos, as regras são rígidas.
São proibidos celulares, entrar de boné ou bermuda, piercing, alargadores nas orelhas, cabelo comprido para os meninos (mesmo rastafári ou moicano), cigarros, consumo de bebidas alcoólicas, desrespeito entre colegas, instrutores e funcionários. Para entrar, somente com o uniforme. Namoro, nem pensar.
Aqueles que não se adaptam desistem por conta própria ou são convidados a se retirar.
Dos 380 que se matricularam no projeto, em julho de 2017, 305 se formaram no dia 10 de dezembro: 149 meninas e 156 meninos. Não é que os 75 restantes não tenham se enquadrado. Alguns deles tiveram de ir embora para ajudar os pais no trabalho.
Os que ficam se deparam com janelas de oportunidades que já abriram perspectivas profissionais inimagináveis para milhares de crianças da periferia de Campo Grande.
Desde sua fundação, em 1998, a ONG já acolheu e preparou mais de 10 mil adolescentes, muitos dos quais se tornaram advogados, arquitetos, engenheiros, psicólogos e administradores.
Eles têm cursos profissionalizantes modulares, que podem durar um ou dois semestres, de informática, serigrafia e auxiliar administrativo. A equipe de formação é composta por oito instrutores, um assistente social e uma coordenadora.
"Não adianta ter profissão e ser desonesto"
O objetivo da Cidade dos Meninos é promover a qualificação profissional de adolescentes vindos de famílias em situação de vulnerabilidade econômica e social, mas o foco principal é a cidadania.
"Nossa busca é formar o cidadão do bem. Faltam caráter, ética e moral hoje no Brasil. Não adianta ter uma profissão e ser desonesto. Neste país muita gente acha bonito roubar. Nada vai mudar se não mudarmos as pessoas", afirma o idealizador e fundador do projeto, o empresário Dalci Vicente Sebben, 62, conhecido como Dan.
A ideia de construir a ONG em Campo Grande surgiu da amizade com o empresário mineiro Jairo Azevedo, criador da Cidade dos Meninos São Vicente de Paulo, em Ribeirão das Neves (MG). "Uma obra dessas nunca acaba. Vai além da parte física, estrutural. Sempre estaremos em falta", avalia Dan.
Presidente de honra da entidade, ele diz que 99% dos jovens que saíram da Cidade dos Meninos se destacaram. "Não é que ele foi melhor como profissional, mas como cidadão ele cresceu. O importante é que se tornou uma pessoa admirada e disputada no mercado. Este é o nosso maior orgulho."
A Cidade dos Meninos é um lugar laico, sem interferência religiosa, política ou filosófica. No espaço, existe um templo ecumênico, que também é usado como espaço cultural e palco de encontros e palestras.
"O que fazemos aqui é assistência social pura e técnica", esclarece o atual presidente da entidade, Antônio Ramão Marcondes Carvalho, 72, advogado aposentado e ex-superintendente da Polícia Rodoviária Federal no Estado.
Carvalho diz que na Cidade dos Meninos os jovens recebem aprendizagem profissional e a prática é realizada no mercado. Atualmente, 80 jovens estão contratados por empresas e outros 32 pelo Tribunal de Contas do Estado --todos remunerados.
Muitos fazem jornada tripla. De manhã na Cidade dos Meninos, à tarde trabalham e estudam à noite. Só permanecem no projeto, entre outras exigências, aqueles que conquistam boas notas nas escolas regulares.
Os cursos são ministrados em galpões, adaptados com salas de aula e atividades múltiplas.
No laboratório de informática, há desde aulas básicas de digitação a cursos de montagem e manutenção de microcomputadores. Os adolescentes aprendem ainda criar redes, interligar computadores, configurar roteadores, formatar e configurar sistema operacional. Recebem também cursos de serigrafia e auxiliar administrativo.
"Aqui é uma preparação para a vida"
A instrutora de informática Mônica Aparecida Álvares dos Anjos, 18, cursa o segundo semestre de educação física em uma faculdade particular. Ela entrou com 14 anos na Cidade dos Meninos.
Fez serigrafia e curso para auxiliar administrativo na CDM, como eles chamam o lugar. Hoje paga o curso superior com o dinheiro que recebe como orientadora na ONG.
"Muitos que entram aqui se modificam. Têm uns que só por Deus. Melhoram as notas na escola, mudam na família e até no comportamento no ônibus. Eles ganham uma oportunidade e aproveitam. Aqui é uma preparação para a vida", avalia. Primos, irmãos e amigos de Mônica também estudaram por lá.
Casados desde 2014, Viviane Rosário do Vau Rosa, 25, e Laerte Brito Rosa, 26, se conheceram na Cidade dos Meninos. Filha de pai pedreiro e mãe dona de casa, Viviane se formou em direito e hoje é executiva em uma rede atacadista.
O marido se formou em relações internacionais e trabalha no departamento comercial em uma universidade. Seus pais eram sitiantes e moravam a 30 km de Campo Grande quando Laerte era adolescente.
Viviane tinha jornada tripla. De manhã na CDM, à tarde estagiava em um banco e estudava à noite. "Sou muito grata a Deus pela Cidade dos Meninos. Lá comecei a trabalhar e nunca mais parei. Estudei costura, serigrafia, auxiliar administrativo. Nós mesmas fazíamos os uniformes, tanto as camisetas como as estampas", conta.
Projeto se mantém com verba pública, doações e horta
Por mês, a Cidade dos Meninos precisa de aproximadamente R$ 110 mil para se manter. Todos são contratados por CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
O deficit mensal gira em torno de R$ 60 mil. Para cobrir as despesas, os administradores criaram uma horta hidropônica em um espaço de 5.100 m², estufas que produzem alface, rúcula e agrião. Ali os adolescentes não trabalham. O serviço é feito por profissionais contratados.
A produção diária, de cerca de 1.400 maços de hortaliças, é vendida em supermercados. "O governo do Estado ajuda com R$ 6.500 e a prefeitura com R$ 3.500 por mês. O restante, tirando o dinheiro da horta, temos que nos virar [para conseguir]", explica o coordenador-geral da Cidade dos Meninos, o engenheiro Pedro Jordão Neto, 60.
"Nosso desafio é tornar a Cidade dos Meninos autossustentável. Hoje, sempre que temos problemas financeiros, ainda recorremos ao Dan. No final ele que nos salva, todo mês, com dinheiro do próprio bolso", afirma Neto.
Parte da arrecadação é feita com doações e apadrinhamentos, recursos que permitem que uma pessoa ou empresa possa custear um adolescente aprendiz.
"Aqui fornecemos lanche da manhã, da tarde e parte dos alunos ainda almoça conosco, cerca de 50 por dia", diz o coordenador. "Muitos não conseguem voltar para almoçar em casa. Se a gente não der a comida, eles vão passar fome o dia todo."
A ONG fornece ainda passes de ônibus para os meninos que trabalham. Em parceria com uma universidade, duas vezes por semana os adolescentes recebem atendimento médico e odontológico no local.
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