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Albergues em SP barram moradores por "mau comportamento", acusam assistentes e usuários

Ao menos 30 mil pessoas vivem hoje nas ruas da cidade de São Paulo, segundo estimativas de ONGs - uol tab
Ao menos 30 mil pessoas vivem hoje nas ruas da cidade de São Paulo, segundo estimativas de ONGs Imagem: uol tab

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

11/01/2018 04h00Atualizada em 16/01/2018 10h51

Uma reunião em tom ríspido em um centro de acolhida na Mooca (zona leste de São Paulo), no último dia 30, dava o recado a quem pensasse em se envolver em futuras brigas, além da que era debatida ali, ou a quem não quisesse seguir as regras do local: ou adotava o “respeito mútuo”, ou estaria “fora da proposta”.

Entre as regras para usufruto do espaço, que oferece, em geral, banho, alimentação e pernoite a pessoas em situação de rua, estava o limite de horário de chegada: até as 16h. O UOL teve acesso ao áudio da reunião, comandada por um dos coordenadores do espaço, e à qual estiveram presentes funcionários da unidade, usuários e integrantes da Pastoral do Povo de Rua, da Igreja Católica.

“Eu gostaria de verdade que o Centro Temporário de Acolhimento fosse para todos aqueles que precisam, mas infelizmente tem pessoas que não vão se adaptar. [...] Tem normas internas, e aqueles que não estão cumprindo as normas internas não poderão ficar. Por exemplo: existe o horário para chegar. [...] Agora... como eu cheguei aqui essa semana também tinha dois totalmente alcoolizados, totalmente querendo (sic) brigar, bater em tudo e em todos, sem respeitar, eu disse: ‘está restrito’, e acabou. Pode ir na casa do padre Julio Lancellotti [coordenador da pastoral], pode ir na casa do cardeal, de quem quiser: é não. É não.”

A restrição a que o coordenador se referiu não é exatamente uma exclusividade da unidade, uma das 40 organizações sociais que realizam a acolhida de pessoas em situação de rua e que são conveniadas da Prefeitura de São Paulo – ou seja, recebem recursos públicos.

Usuários dos serviços de acolhida dali e de outras unidades relataram ao UOL as mais diversas situações pelas quais são banidos ou ficam “restritos”. Em todas elas, o que dita a exclusão do serviço são aspectos de comportamento. Em praticamente todos os casos ouvidos, o usuário teve de retornar à rua porque não foi redirecionado a outra unidade.

Sistema reúne dados sobre frequência e comportamento

De acordo com a pastoral e com assistentes sociais que prestam serviços à Prefeitura, as quais aceitaram falar ao UOL sob a condição de anonimato a fim de evitar retaliações, as restrições são anotadas em um sistema chamado Sisa (Serviço de Informação do Atendimento aos Usuários) com observações sobre o comportamento de quem é atendido. Oficialmente, entretanto, o sistema, hospedado no portal da Prefeitura de São Paulo, vale para registro da frequência dos usuários nas unidades e das informações sobre o histórico de vida prestadas na entrevista com a equipe de assistência que o atende.

O acesso se dá apenas com login e senha a funcionários autorizados. Em geral, explicou uma das profissionais, o educador que trabalha no CTA alimenta esse sistema com a frequência do usuário. Informações como a causa de desligamento da pessoa, entrevista com ela e dados mais consistentes são anotados pelo gerente da unidade, pelo assistente técnico, assistente social e psicólogo.

Por outro lado, ela ressalvou: se esse usuário tem uma restrição em um centro de acolhida e acaba restrito ou desligado dele, o que acaba acontecendo é que se coloca no sistema o motivo disso, em geral por uma razão de comportamento, “por profissionais que podem inclusive estar em treinamento.”

“Se a pessoa é desligada porque chegou alcoolizada ou porque teve algum conflito com um educador, por exemplo –e em finais de ano isso é ainda mais comum, porque os usuários ficam muito mais vulneráveis --, fica com esse estereótipo de má conduta registrado no sistema. Aí não pode pernoitar, tomar banho, se alimentar, e muitos acabam voltando a dormir no relento”, explicou uma assistente.

O problema se agrava, na avaliação de uma dessas funcionárias, porque nem sempre o banido de um centro de acolhida é remetido a outro centro –sobretudo quando isso acontece em regiões de periferia, onde a oferta de vagas é menor que no centro.

“O correto seria, desligando a pessoa de uma unidade de acolhimento, encaminhá-la a outra vaga. Ao menos, é o que preconiza a portaria 46”, explicou a agente.

A portaria à que ela se refere, publicada em 2010 durante a gestão do então prefeito Gilberto Kassab (PSD), é a que rege a rede socioassistencial do município de São Paulo e regula os serviços nesse campo prestados por meio de convênios.

Os profissionais ouvidos pela reportagem afirmaram que o registro das restrições é anterior à administração do prefeito João Doria (PSDB), mas teria se intensificado nos últimos 12 meses. A explicação que deram é que, somada à própria condição de rua, onde estão mais sujeitos à violência, os usuários passam por ações quase que diárias de retirada dos pertences, pela GCM (Guarda Civil Metropolitana), e, com isso, chegam aos equipamentos de acolhida emocionalmente mais vulneráveis.

“O problema é que a pessoa fica com essa restrição e não tem acesso ao motivo sequer para se defender. Em média, fica pelo menos seis meses banida, ou até por tempo indeterminado”, completou uma das funcionárias. Indagados sobre quais os critérios adotados para essa forma de registro, os entrevistados foram unânimes: isso fica a critério de cada entidade conveniada. “A Prefeitura até sabe que isso está acontecendo, mas também não se posiciona”, concluiu um deles.

"Voltar à rua jamais pode ser a solução", diz Júlio Lancelotti

O coordenador da Pastoral do Povo de Rua, Júlio Lancelotti - Eduardo Knapp/Folhapress - Eduardo Knapp/Folhapress
O coordenador da Pastoral do Povo de Rua, Júlio Lancelotti
Imagem: Eduardo Knapp/Folhapress

Para o coordenador da Pastoral do Povo de Rua, as restrições anotadas no Sisa “impedem o atendimento em um espaço que deveria ser de acolhida”. “A pessoa que é mencionada no Sisa não fica sabendo o que está escrito sobre ela. É correto o usuário agredir um educador, por exemplo? Não. Mas bani-lo dali e fazê-lo voltar à rua jamais pode ser a solução”, defendeu.

Lancelotti afirmou ter atendido recentemente um morador de rua que, vindo da Bahia para São Paulo, teve o “desligamento” registrado em um centro de acolhida porque teria saído do espaço com um cobertor nas costas.

“Ele sofria muito com o frio e saiu do serviço de acolhida, de manhã, com o cobertor nas costas. Teve de devolver o cobertor e ficou marcado, restrito, como alguém que ‘quebrou a regra’. Fui à Assistência Social e reclamei: não queria sentir que um cobertor fosse mais importante que um ser humano. Ainda mais em um centro de acolhida que é bancado com o dinheiro público”.

Prefeitura diz seguir política nacional de assistência e sugere queixas no 156

Em nota, a Secretaria Municipal de Assistência Social informou que os 102 serviços de acolhimento executados pelas 40 organizações sociais conveniadas --com capacidade de 14.621 vagas a pessoas em situação de rua --representam cerca de 10% dos serviços prestados por esta secretaria, incluindo os CTAs.

“Com relação ao Sisa, a secretaria reitera que apenas os técnicos assistentes sociais elaboram e têm acesso aos prontuários dos atendidos e as classificações, conforme preconiza a legislação do Sistema Único de Assistência Social no tocante ao sigilo profissional do atendimento. Outros profissionais da SMADS possuem acesso ao sistema para consultas simples, como local onde a pessoa está acolhida e dados pessoais, mas não ao prontuário e histórico do Assistente Social”, informou a pasta.

Ainda conforme a assessoria da Assistência, a pasta executa a política nacional de assistência social, “seguindo as diretrizes preconizadas por meio do conjunto das legislações nacionais”, e “também segue as normatizações municipais que orientam quanto a procedimentos em caso de conflitos e outras questões que podem ser restritivas de acolhidos em centros de acolhida, como a Portaria 21, que estabelece as Diretrizes Técnicas de SMADS para o trabalho com a Pessoa em Situação de Rua.”

“Seguindo as diretrizes municipais, a SMADS preconiza o atendimento humano, atencioso e respeitoso, por parte de todos os trabalhadores sociais. A mesma norma técnica também orienta quanto a responsabilidades e deveres dos acolhidos que usam os serviços públicos, sendo que condutas como uso de drogas ilícitas, agressões físicas, ameaças e afins, podem acarretar o desligamento do responsável do serviço, com vistas a garantir os direitos dos demais acolhidos.”

“Importante ressaltar que diante da ampla rede que esta secretaria dispõe, o atendimento de qualquer pessoa que se envolva em situações de conflitos pode ser continuado em outro serviço, sendo esta a orientação desta secretaria, que disponibiliza atendimento a todos que necessitarem nas unidades de Centro Pop, responsáveis pela supervisão dos serviços nos territórios. Vale ainda citar que 26 equipes de abordagem de rua (Serviço Especializado em Abordagem Social) atuam no atendimento direto às pessoas que se encontram sem vagas de acolhimento nas ruas da cidade, garantindo que todos tenham seus direitos garantidos. Além das unidades Centros Pop, a qualquer hora do dia, em casos de emergências, a CAPE pode ser acionada por telefone 156.”

Sobre o 156, a secretaria enfatizou que queixas referentes aos serviços de atendimento podem ser encaminhadas por esse canal. A secretaria não respondeu, por outro lado, o que seria feito a respeito de casos específicos apontados pela reportagem – como o do CTA da Mooca, a cujo áudio de reunião o UOL teve acesso.

Em "nota complementar" posterior à publicação da matéria, a Assistência Social informou que "os casos citados na reportagem são de pessoas que receberam oferta para todos os encaminhamentos possíveis: documentação, saúde, capacitação profissional, proposta para trabalho, escola, oferta de tratamento para dependência química, escuta qualificada dos técnicos assistentes sociais, dinâmicas e grupos com psicólogos."