Topo

Roupa molhada, jeito feminino e RG: moradores se dizem barrados em albergues de SP

Desenhista Carlos Roberto Vieira Francisco afirma ter sofrido discriminação em função de sua orientação sexual - Janaina Garcia/UOL
Desenhista Carlos Roberto Vieira Francisco afirma ter sofrido discriminação em função de sua orientação sexual Imagem: Janaina Garcia/UOL

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

11/01/2018 04h00

Assistentes sociais e moradores de rua revelaram à reportagem do UOL que usuários têm sido barrados em centros de acolhimento temporário de São Paulo conveniados à Prefeitura. Em geral, esses espaços oferecem banho, alimentação e pernoite a pessoas em situação de rua, e usuários relatam terem sua entrada restrita devido a aspectos de comportamento.

De acordo com a Pastoral do Povo de Rua, da Igreja Católica, e com assistentes sociais que prestam serviços à Prefeitura, as restrições são anotadas em um sistema chamado Sisa (Serviço de Informação do Atendimento aos Usuários) com observações sobre o comportamento de quem é atendido. Oficialmente, o sistema, hospedado no portal da Prefeitura de São Paulo, vale para registro da frequência dos usuários nas unidades e das informações sobre o histórico de vida prestadas na entrevista com a equipe de assistência que o atende.

Os assistentes afirmam que a restrição à entrada de alguns usuários é anterior à gestão do prefeito João Doria (PSDB), mas que se intensificou na atual administração.

Em nota, a Secretaria Municipal de Assistência Social informou que a pasta executa a política nacional de assistência social, “seguindo as diretrizes preconizadas por meio do conjunto das legislações nacionais”, e “também segue as normatizações municipais que orientam quanto a procedimentos em caso de conflitos e outras questões que podem ser restritivas de acolhidos em centros de acolhida”.

“Seguindo as diretrizes municipais, a SMADS preconiza o atendimento humano, atencioso e respeitoso, por parte de todos os trabalhadores sociais. A mesma norma técnica também orienta quanto a responsabilidades e deveres dos acolhidos que usam os serviços públicos, sendo que condutas como uso de drogas ilícitas, agressões físicas, ameaças e afins, podem acarretar o desligamento do responsável do serviço, com vistas a garantir os direitos dos demais acolhidos”, diz o comunicado.

Depoimentos

UOL conversou com pessoas em situação de rua que afirmam ter sido barradas em centros de acolhida, no último ano, por questões de comportamento.

Leia, a seguir, alguns depoimentos:

Daniel Guerra Feitosa, 35, ajudante de pedreiro

Há alguns meses, eu estava no albergue Vivendas no Pari. Lavei umas roupas lá, coloquei três peças para secar em uma das camas do abrigo e disseram que eu estava faltando com o respeito, “infringindo normas disciplinares”. Não consegui mais entrar lá. Me sinto oprimido por uma coisa tão sem importância, sabe. Afinal, lavei a roupa para ir atrás de emprego e conseguir me bancar.

Há três meses, na comunidade São Martinho, um funcionário xingou o padre Júlio [da Pastoral] e eu dei um soco nele. Não posso entrar mais lá, me informaram, “por tempo indeterminado”.

Marcelo Ferreira de Almeida, 40, músico

Marcelo Ferreira de Almeida, 40, músico - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
Marcelo Ferreira de Almeida, 40, músico
Imagem: Janaina Garcia/UOL

Acabei de sair do Arsenal da Esperança e não consegui fazer a reinserção – que é a última etapa do atendimento. Todos os negros foram barrados. Fiz curso de padaria e de confeitaria e fui me candidatar à reinserção. Um funcionário me disse que o responsável não foi com a minha cara.

Isso é complicado, porque a reinserção não só é a última etapa, como é um trabalho pelo qual se é remunerado. Chegou no meu momento e não fui chamado, reclamei e me responderam: “Vai correr atrás dos seus direitos”. Alegaram que eu tinha dinheiro guardado, quando, na realidade, eu recebia ate dezembro o Bolsa Família. Entenderam que com esse dinheiro eu não precisava do trabalho remunerado.

Vim do interior, cheguei física e espiritualmente debilitado, bebia...passei cinco dias na rua e não foi nem um pouco fácil. Mas a impressão que eu tenho é que querem pessoas que não conseguem mesmo segurar a onda nesses serviços. Ali eu sei que não entro mais, depois que reclamei e questionei os critérios.

Severino Lourenço Santana, 63, auxiliar de recape

Severino Lourenço Santana, 63, auxiliar de recape - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
Severino Lourenço Santana, 63, auxiliar de recape
Imagem: Janaina Garcia/UOL
Vim do Recife para trabalhar em São Paulo há 30 anos. Voltei para minha cidade, trabalhei um tempo na rodoviária de lá e voltei para São Paulo há nove meses. Dormi uns dias na rua, depois dormia em hospitais – dizia que estava esperando um parente internado, para conseguir ficar --, porque tenho medo de dormir na rua. Conheço gente que foi agredida com tijolo dormindo na rua.

Hoje eu trabalho com recapeamento e consegui vaga no CTA da Mooca. Na casa de acolhida Frei Leão, há uns meses, pedi para receberem uma carta pra mim e se negaram. Alegaram: “E se fosse um oficial de Justiça mandando uma intimação?”

Discuti com a funcionária e disse que aquilo era uma vagabundagem comigo. Fui para o quarto dormir, irritado. Às 20h, apareceram dois GCMs me pedindo o RG e um  funcionário da casa dizendo que “você vai agora mesmo ser desligado”. Consegui sair de lá uma da manhã com o recado de um funcionário ao GCM: “Cuidado que ele é perigoso”. O guarda ainda queria saber se eu estava com documento falso e duvidou quando eu disse que tinha um RG de São Paulo e um de Pernambuco: “Com essa idade, você não tem B.O.?” Fui barrado lá.

Carlos Roberto Vieira Francisco, 31, desenhista

"Eu disse que estavam me discriminando e ainda aleguei que poderia colocar uma calça e uma blusa, se fosse o caso", disse o desenhista - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
"Eu disse que estavam me discriminando e ainda aleguei que poderia colocar uma calça e uma blusa, se fosse o caso", disse o desenhista
Imagem: Janaina Garcia/UOL

Sou de Montes Claros, mas fui criado em Belo Horizonte. Hoje estou no CTA da Mooca. Mas em fevereiro passado eu precisei de atendimento, porque eu estava na rua, e me disseram que podia voltar no dia seguinte e que teriam inclusive um armário para eu guardar roupas e coisas do meu ofício, sou desenhista. No dia seguinte, pedi um pernoite e disseram que não tinha nada, que eu podia ir embora. Aquilo foi um balde de água fria.

Aí conversamos eu, o monitor do espaço e a assistente social de lá. Disseram que havia uma preocupação em relação a mim, pelo meu “visual”. Disseram que eu estava apresentando um “visual feminino”. “É meu direito usar roupas femininas, não?”, perguntei. Mas me disseram: “Você pode ficar, mas amanhã vai procurar um espaço específico a pessoas como você, LGBT”. Eu estava de shorts e de blusa colorida. Afirmei que estavam me discriminando e ainda aleguei que poderia colocar uma calça e uma blusa, se fosse o caso. Argumentaram que era uma precaução e eu tive que lutar para ficar lá. Acredito que ninguém é igual a ninguém.

Há duas semanas, no Espaço São Martinho, cheguei lá 15h20 e o lugar fecha 16h. Discuti com uma funcionária porque ela disse que eu não podia entrar no banheiro LGBT do lugar para lavar o cabelo. Depois de um certo horário, quando estão limpando, eles abrem esse banheiro para todo mundo. Entrei para me limpar e começaram a esmurrar a porta para eu sair. Me disseram que lá eu não entro mais tão cedo. Perguntei à funcionária: “Afinal, você é facilitadora ou 'dificultadora' (sic) social?”

Alexandro Lopes Azeredo, 36, auxiliar de serviços gerais

Alexandro Lopes Azeredo, 36, auxiliar de serviços gerais - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
Alexandro Lopes Azeredo, 36, auxiliar de serviços gerais
Imagem: Janaina Garcia/UOL

Em dezembro do ano passado, fui ao CTA no Anhangabaú, pedi pernoite, disseram que eu podia retornar no dia seguinte. Quando cheguei, um orientador disse que eu não poderia entrar.

Não sou homofóbico, preconceituoso, mas não curto, para mim, relacionamento homossexual. Sei que o orientador, ex-interno, é gay. Ele insinuou que eu era “bonitinho” e que eu poderia ficar lá se cedesse. Me senti chantageado, mesmo a mensagem não tendo sido explícita. Achei isso uma falta de respeito.

Fiquei preso de dezembro de 1998 até de dezembro do ano passado, por duplo homicídio – matei minha mulher e o amante dela e não me orgulho nem um pouco disso. Não uso mais droga, não bebo, não fumo, não está fácil, mas sei que vou chegar lá. Se venci lá dentro do presídio, venço aqui fora. Mesmo com o preconceito de eu ser egresso do sistema penitenciário – viatura policial passa e não tem muita educação com ex-presidiário, não, sabe?

Tive diversas oportunidades de entrar para o tráfico, na cadeia, e não entrei. E ouvir isso de um cara que está em um centro de acolhida para me orientar, sabendo ele que sou ex-presidiário, foi algo bastante humilhante para mim.

Esse CTA foi o segundo por onde passei. O primeiro a que eu fui foi o do Brás; cheguei no dia em que saí da penitenciária. Expliquei minha situação e a resposta que tive foi: “não podemos fazer nada por você”. Nesse dia, dormi no Páteo do Colégio.

Leandro Boco de Lima, 27, operador de telemarketing e músico

Leandro Boco de Lima, 27, operador de telemarketing e músico - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
Leandro Boco de Lima, 27, operador de telemarketing e músico
Imagem: Janaina Garcia/UOL

Sou de São Paulo, da Mooca. Sempre ouvi da minha mãe que eu era um peso para ela, que ela queria me abortar. Eu soube depois por familiares que ela queria, mesmo. Meu pai era alcoólatra. Até hoje sou rejeitado por ela.

Comecei a me drogar em 2006, com 16 anos, depois que minha avó faleceu. Usava cocaína e maconha, hoje só uso álcool.

Estou na rua desde 2014. Minha família desistiu de mim, já que tudo o que eu podia vender para alimentar o vício, eu vendia. A última vez que fui para casa, em fevereiro do ano passado, vendi uma panela de arroz elétrica.

Já bati de frente com monitor – fiquei cinco meses no Arsenal da Esperança, fiz o curso de ajudante de cozinha e auxiliar de padaria. Começaram a implicar de um jeito que não havia razão; comecei a sentir que há um racismo velado. Como dizem que é um centro de acolhida?

Fui banido, mas quis continuar no coral. Um dos responsáveis lá tentou me ajudar, mas viu no sistema que eu estou com “má conduta”, então nunca mais eu entro lá. É um constrangimento, uma humilhação. E imagino que uma mão lave a outra: de que adianta, para esses funcionários, pessoas como eu estar nas ruas? Eu preciso da acolhida, e eles precisam trabalhar.