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"Abuso de força letal": RJ tem 36 mortos para cada policial assassinado no Estado

PMs patrulham a favela Pavão-Pavãozinho (zona sul), uma das 38 comunidades com UPP - Gabriel de Paiva/Ag. O Globo
PMs patrulham a favela Pavão-Pavãozinho (zona sul), uma das 38 comunidades com UPP Imagem: Gabriel de Paiva/Ag. O Globo

Paula Bianchi

Do UOL, no Rio

19/01/2018 04h00

A cada PM morto em serviço no Rio de Janeiro em 2017, outras 36 pessoas morreram em supostos confrontos com a polícia. Na esteira da crise de segurança no Estado, o número de mortos pela polícia foi um dos indicadores que mais cresceu, indicando uso excessivo da força por parte dos agentes e a anuência do governo com a situação.

Há cinco anos, em 2013, a proporção era de 20 mortos a cada policial assassinado --ao todo foram 413 casos de homicídio decorrentes de intervenção policial. De lá para, o número cresceu 177%, ultrapassando os mil mortos pela primeira vez desde 2009 e chegando no ano passado a 1.124 casos.

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A relação entre mortos pela polícia e policiais mortos é uma das principais formas utilizadas por organismos internacionais para avaliar se há ou não excesso de uso de força letal. Nos Estados Unidos, o FBI (Federal Bureau of Investigation) trabalha com a proporção de 12 civis mortos para cada policial morto.

De acordo com a editora-executiva do Fórum de Segurança Pública, Samira Bueno, não há consenso, mas quando essa proporção é maior do que dez, considera-se que a polícia está abusando do uso da força letal.

O relatório anual da ONG Human Rigths Watch publicado nesta quinta-feira (18) cita o Estado do Rio de Janeiro como exemplo da violência policial “sem freios” brasileira.

Na África do Sul, por exemplo, também criticada pela Human Rights Watch pelo excesso de uso de violência policial, a proporção é de nove civis mortos a cada policial assassinado; nos EUA, onde a questão deu origem ao movimento "Black Lives Matter" e à criação de levantamentos paralelos, a relação é de 11 civis para cada agente morto. Os números, os mais recentes divulgados, são de 2015.

“O fato de a polícia ter autorização para usar a força letal não significa que eles tenham carta branca para decidir quem morre e quem vive nas periferias das grandes cidades. O que vemos no Rio e em São Paulo são as polícias fazendo uso da força com frequência, o que indica que há abusos”, diz a socióloga.

Em São Paulo, o número é mais alto: 56 mortos a cada policial assassinado nos primeiros nove meses do ano, dado mais recente divulgado. A proporção é maior no Estado paulista, o que não significa que a sua polícia mate mais --a diferença tem relação com o número de policiais mortos em serviço. Em São Paulo, morreram até setembro oito PMs contra 23 agentes assassinados no Rio no mesmo período, quase o triplo.

Tomando como base a taxa de mortos pelas polícias por 100 mil habitantes, índice usado para aferir a criminalidade e comparar crimes em regiões diferentes, a taxa do Rio permanece 4 vezes maior.

Com cerca de 45 milhões de habitantes, a taxa de mortos por 100 mil no Estado de São Paulo ficou em 1,09 nos primeiros nove meses do ano, quando 494 pessoas foram mortas pela polícia. No Rio, onde vivem 16,7 milhões de pessoas, o número chegou a 4,86 no mesmo período, com 813 mortes.

Nos EUA, a taxa em 2015 ficou em 0,19. Na África do Sul, 0,66.

Polícia vulnerável

Nessa situação, considera a socióloga, o policial acaba como uma das pontas mais frágeis --o ano de 2017 encerrou no RJ com 134 PMs assassinados e, até 17 de janeiro deste ano, outros seis foram mortos. O número inclui agentes mortos em serviço e no horário de folga.

“O policial está vulnerável por todos os lados”, diz Samira, ao lembrar que os agentes são mortos muito mais fora do que em serviço, tanto ao serem identificados como policiais quanto por envolvimento com tráfico e milícia.

“A gente não vai resolver a violência policial, enquanto olhar apenas para quem aperta o gatilho”, diz. Segundo ela, a questão da hierarquia é muito presente na PM e o crescimento do número de mortes civis tem relação com a anuência direta do comando.

“Muito provavelmente os comandantes não só estão deixando essas situações, como estão incentivando. Não me parece só um descontrole, me parece uma diretriz política.”

Indicador da situação da segurança

Para a socióloga e coordenadora do CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) da Universidade Cândido Mendes, Silvia Ramos, as mortes pela polícia são o indicador mais sensível da situação da segurança pública no Estado do Rio --segundo ela, o número é o primeiro tanto a cair quanto a subir em situações de crise, como a atual.

"Esse número expressa muito claramente se a polícia está ou não sob controle. O policial se vê na ponta do sistema, decidindo o que fazer a cada instante", afirmou em entrevista ao UOL.

Os mortos pela polícia representam também 18% dos 6.731 casos de letalidade violenta (homicídios, mortos pela polícia, roubos seguidos de morte e lesão corporal seguida de morte), registrados pelo ISP (Instituto de Segurança Pública) no ano passado.

"Quando a polícia é responsável por uma porcentagem tão alta dos homicídios é sinal que algo está muito errado com a política de segurança pública. Isso tem consequência para os próprios policiais que estão em serviço ou fora dele. É preciso parar de alimentar esse ciclo de violência”, diz Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil.

Falta de política de segurança

Samira critica o que vê como falta de uma política de segurança pública no Estado e as frequentes incursões policiais em favelas. Não há dados sobre o número total de operações policiais realizadas em 2017.

“Essa ação ostensiva de troca de tiros está resultando em alguma coisa? Não há outros mecanismos, como inteligência e tecnologia, para interromper a ação desses grupos? Como é que a droga está chegando, como eles lavam o dinheiro da droga?”, questiona.

Em 2017, conforme mostrado pelo UOL, a pasta de Segurança Pública gastou R$ 2.469,50 em informação e inteligência dos R$ 5.000 destinados para a área. “Política pública não é subir o morro e trocar tiros”, diz.

Controle externo

Tanto Samira quanto a Human Righs Watch questionam o silêncio do Ministério Público e das demais instituições sobre a situação.

“Há protocolos de todos os tipos. De uso da força, de abordagem. A questão é, por que eles não estão sendo observados? Quem está controlando a ação da polícia? Onde está o Ministério Público, que deveria estar olhando para essas ações policias?”, questiona a socióloga.

“O Rio não vive uma guerra, vive uma situação de necessidade de enfrentamento da criminalidade. Entre o crime e a polícia tem uma situação de milhões de pessoas sofrendo com isso diariamente.”

O UOL questionou o Ministério Público sobre as declarações e aguarda um posicionamento da instituição.

Rio quer diminuir mortes em 20% em 2018

A Secretaria de Segurança do Rio informou que, em dezembro de 2017, houve redução de 23% no número de vítimas de homicídios decorrente de oposição à intervenção policial em comparação ao mesmo período de 2016.

"A Polícia Militar estabeleceu como meta mínima para 2018 a redução de 20% neste indicador e de 35% nos disparos de armas de fogo", disse a pasta.

A secretaria afirmou, ainda, que vai revisar o conteúdo de academias e cursos policiais e que avaliará agentes que trabalham em batalhões com maior número de letalidade.