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Empresas ligadas a trabalho escravo financiaram campanha de 10% dos deputados federais eleitos

Líderes da bancada ruralista apoiaram medida do governo Temer que reduzia as situações consideradas trabalho escravo no Brasil - Antonio Cruz / Agencia Brasil
Líderes da bancada ruralista apoiaram medida do governo Temer que reduzia as situações consideradas trabalho escravo no Brasil Imagem: Antonio Cruz / Agencia Brasil

Piero Locatelli

Da Repórter Brasil

30/01/2018 12h01

Ao menos um em cada dez deputados federais teve parte de sua campanha financiada por empresas flagradas utilizando mão de obra análoga à escrava. Na eleição de 2014, 51 dos 513 parlamentares eleitos receberam um total de R$ 3,5 milhões de empresas que estão ou estiveram presentes nos cadastros de empregadores autuados pelo crime.

O PMDB é o partido com mais deputados que recebeu dinheiro desse grupo, com 13 membros, o que representa 20% de sua bancada. O PT é o segundo, com 11 deputados, ou 16% da bancada do partido na Câmara.

Entre os deputados financiados, há líderes de partidos, cinco ex-ministros do governo Dilma Rousseff (PT), secretários estaduais de governos tucanos e petistas, além de doações repassadas pelo gabinete do então candidato a vice-presidente da República, Michel Temer.

Dos 51 deputados, 21 fazem parte da bancada ruralista, a Frente Parlamentar da Agropecuária. A bancada é crítica ao conceito de trabalho escravo no Brasil e elogiou medida do governo Temer que reduzia as situações consideradas trabalho escravo no Brasil --segundo diversas entidades, poderia representar um obstáculo ao combate a esse crime. A portaria, de outubro do ano passado, gerou polêmica e acabou sendo suspensa. A Frente Parlamentar foi procurada por e-mail e por telefone, mas não respondeu aos pedidos de esclarecimento da Repórter Brasil.

O levantamento compara as doações declaradas ao Tribunal Superior Eleitoral pelos candidatos eleitos em 2014 com as empresas que passaram pela lista suja, cadastro de empregadores flagrados com trabalho escravo divulgado pelo governo federal entre 2003 e 2017. A base também considera os nomes que passaram pela lista da transparência. Elaborado com critérios semelhantes à lista do governo federal, este outro levantamento foi obtido por meio da Lei de Acesso à Informação no período em que a lista suja estava suspensa por liminar do Supremo Tribunal Federal, entre dezembro de 2014 e março 2017.

Os dados, inéditos, foram levantados pela Repórter Brasil para o especial Ruralômetro, banco de dados e ferramenta de consulta que permite avaliar os deputados com base nos projetos de lei votados ou propostos por eles. O Ruralômetro ouviu uma série de organizações do terceiro setor, que avaliaram como esses projetos podem ou não impactar o meio ambiente, comunidades indígenas e trabalhadores rurais.

O levantamento considera casos de trabalho escravo que podem ter sido flagrados antes ou depois da doação feita durante as eleições de 2014. Receber doações de empresas flagradas com trabalho escravo ou infração ambiental não configura crime nem é proibido pela lei eleitoral. Mas é uma informação relevante, que pode sinalizar alguns dos interesses dos financiadores ao investir na campanha de deputados. 

Operações do Ministério do Trabalho flagraram trabalho escravo em propriedades de pessoas e empresas que doaram R$ 5,3 milhões a deputados federais eleitos - Lunae Parracho/Repórter Brasil - Lunae Parracho/Repórter Brasil
Operações do Ministério do Trabalho flagraram trabalho escravo em propriedades de pessoas e empresas que doaram R$ 5,3 milhões a deputados federais eleitos
Imagem: Lunae Parracho/Repórter Brasil

Secretário de Alckmin lidera lista

O deputado da atual legislatura que mais recebeu dinheiro de empresas responsabilizadas pelo crime foi Samuel Moreira (PSDB-SP). Em 2016, ele se licenciou do cargo para assumir a secretaria da Casa Civil do governo de Geraldo Alckmin (PSDB) em São Paulo.

Moreira recebeu R$ 500 mil da Tratenge Engenharia, empresa autuada por trabalho escravo na construção do Hospital Universitário da Federal de Juiz de Fora. O caso aconteceu em março de 2013, mais de um ano antes da eleição.

Em resposta enviada por e-mail, Moreira afirmou que “não tinha conhecimento” de que a empresa estava na lista suja do trabalho escravo na eleição de 2014. Ele afirma que sua atuação parlamentar não foi afetada por esta ou qualquer outra doação realizada em sua campanha. No total, o deputado recebeu R$ 2,8 milhões.

A Tratenge Engenharia, empresa financiadora, foi procurada por e-mail e por telefone, mas não respondeu aos pedidos de esclarecimento da Repórter Brasil.

Cinco ex-ministros de Dilma estão na lista

Cinco ex-ministros de Dilma Rousseff aparecem na lista. Entre eles, está Maria do Rosário (PT-RS), que comandou a pasta dos Direitos Humanos entre 2011 e 2014.

Rosário declarou ter recebido R$ 100 mil da MRV Engenharia. Maior construtora do país e líder no programa Minha Casa Minha Vida, a empresa foi autuada por trabalho escravo em diferentes obras antes do período eleitoral.

A assessoria da deputada afirmou em nota que “nenhuma doação eleitoral influenciou ou influencia os mandatos exercidos por Maria do Rosário ao longo de sua vida pública”. Ela afirmou que “atuou firmemente para aprovação da PEC [Proposta de Emenda Constitucional] contra o trabalho escravo” e que denunciou a precarização da fiscalização de combate ao crime. A deputada não especificou se tinha conhecimento das acusações contra a MRV. 

Funcionário exibe laranja em plantação da Cutrale, empresa flagrada com trabalho escravo e que está entre doadoras para deputados eleitos em 2014 - Divulgação/Procuradoria Regional do Trabalho 15 - Divulgação/Procuradoria Regional do Trabalho 15
Funcionário exibe laranja em plantação da Cutrale, flagrada com trabalho escravo
Imagem: Divulgação/Procuradoria Regional do Trabalho 15

Já a MRV afirmou que todas as suas doações “sempre observaram a legislação eleitoral brasileira” e que a inclusão da empresa na lista suja “ocorreu indevidamente em dois momentos: nas atualizações de 31/07/2012 e 28/12/2012. Em ambos os casos, a exclusão [do nome na lista] foi proferida em decisão judicial do STJ [Superior Tribunal de Justiça]”.

Além de Rosário, figuram entre os que receberam doações os ex-ministros Aguinaldo Ribeiro (Cidades), Alfredo Nascimento (Transportes), Marcelo Castro (Saúde) e Edinho Araújo (Portos). Os três primeiros não responderam aos pedidos de entrevista da reportagem. A assessoria de Edinho Araújo informou que ele desconhecia as autuações e que a empresa em questão (a Cutrale; leia mais abaixo) “não influenciou e nem interferiu na atuação parlamentar”.          

Temer recebeu e repassou a outros candidatos

As doações aos deputados foram feitas tanto de maneira direta, com depósitos nas contas de campanha do político, quanto indiretas, quando passam antes pela conta de outros candidatos ou partidos políticos.

Entre aqueles que receberam o dinheiro de forma indireta está Edinho Araújo, que recebeu R$ 20 mil da Cutrale. O dinheiro da empresa foi depositado ao então candidato por meio do comitê do presidente da Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo), Paulo Skaf, que era candidato a governador pelo PMDB.

Maior produtora de suco de laranja do mundo, a empresa entrou na última edição da lista suja do trabalho escravo, divulgada em outubro de 2017. A empresa afirmou que suas doações sempre foram feitas de “forma legal e transparente”. 

Trabalhador em plantação de laranjas da Cutrale; a maior produtora de suco de laranja do mundo entrou na última edição da lista suja do trabalho escravo - Divulgação/Procuradoria Regional do Trabalho 15  - Divulgação/Procuradoria Regional do Trabalho 15
Trabalhador em plantação de laranjas da Cutrale; a maior produtora de suco de laranja do mundo entrou na última edição da lista suja do trabalho escravo
Imagem: Divulgação/Procuradoria Regional do Trabalho 15

A assessoria Fiesp, por sua vez, afirmou que “todas as doações recebidas pela campanha de Paulo Skaf ao governo de São Paulo estão devidamente registradas na Justiça Eleitoral, que aprovou sua prestação de contas sem qualquer reparo, dentro das regras vigentes”.

Além de Skaf, outros 12 candidatos intermediaram dinheiro ligado a essas empresas. Entre os comitês, está o do presidente Michel Temer, então candidato à vice-presidência. O comitê de Temer repassou cerca de R$ 700 mil doados pela empreiteira OAS para outros seis candidatos --todos eles do MDB de São Paulo.

Em e-mail enviado à reportagem, a Presidência da República afirmou que Temer não tinha conhecimento do caso de trabalho escravo, “porque esse dinheiro era repassado para os candidatos”. A Presidência também negou que a doação influencie a sua atuação. A OAS não respondeu aos pedidos de esclarecimento da Repórter Brasil.

Leia na íntegra as respostas das empresas, deputados, ministros, ex-ministros e presidência da República

Deputada Maria do Rosário
“Nenhuma doação eleitoral influenciou ou influencia os mandatos exercidos por Maria do Rosário ao longo de sua vida pública. A parlamentar tem atuação intransigente e reconhecida na defesa dos Direitos Humanos, contra o trabalho infantil, o tráfico humano, o trabalho escravo e todas as violações.

No Parlamento e no governo federal, Maria do Rosário atuou firmemente para aprovação da PEC contra o trabalho escravo. No atual mandato denunciou com veemência o desmonte da Conatrae [Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo] e a precarização da fiscalização por parte do TEM [Ministério do Trabalho e Emprego] e das equipes volantes compartilhadas com vários órgãos.

Sobre este tema, a deputada apresentou o Projeto de Decreto Legislativo 795/2017, para revogar a portaria do MTE que acaba com a fiscalização do trabalho escravo e compromete a publicação da ‘Lista Suja’”.

Deputado Samuel Moreira
“O deputado licenciado Samuel Moreira não tinha conhecimento de que a empresa estava na ‘lista suja’ do trabalho escravo na eleição de 2014. E sua atuação parlamentar não foi afetada por esta ou qualquer outra doação realizada em sua campanha. Todas estão registradas no TSE. São públicas e transparentes.”

Deputado Nelson Marquezelli
Procurado, não respondeu às solicitações.

Deputado Flaviano Melo
Procurado, não respondeu às solicitações.

Deputado Marcos Montes
Procurado, não respondeu às solicitações.

Deputada Rejane Dias
“Em relação à indagação feita acerca da doação recebida pela campanha da Sra. Rejane Dias, temos a informar que, na verdade, se trata de uma doação indireta, onde a mencionada empresa fez a doação para o Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores e só depois o dinheiro ingressou em campanhas eleitorais do Estado do Piauí, onde foi registrado de acordo com as normas eleitorais e devidamente contabilizado nas prestações de contas, o que demonstra a regularidade da doação.

Por se tratar de uma doação indireta, via Diretório Nacional, resta evidente que não temos, nunca tivemos, qualquer relação, seja jurídica ou particular, com qualquer pessoa da mencionada empresa, nem antes, durante, e nem depois do pleito eleitoral.”

Deputado Baleia Rossi
“Como deputado federal, Baleia Rossi nunca se reuniu com integrantes da empresa, e também jamais tratou de assuntos relacionados a ela.”

Deputado Heitor Schuch
Procurado, não respondeu às solicitações.

Deputado Josi Nunes
Procurado, não respondeu às solicitações.

Deputado Lelo Coimbra
Procurado, não respondeu às solicitações.

Deputado Zé Silva
Procurado, não respondeu às solicitações.

Ministro Edinho Araújo
"- O prefeito tem conhecimento das autuações recebidas pela Cutrale?
Desconhecia as autuações
- De que forma as doações da Cutrale influenciaram a sua atuação como parlamentar?
Não influenciou e nem interferiu na atuação parlamentar."

Ministro Aguinaldo Ribeiro
Procurado, não respondeu às solicitações.

Ministro Alfredo Nascimento
Procurado, não respondeu às solicitações.

Ministro Marcelo Castro
Procurado, não respondeu às solicitações.

Presidência da República/Michel Temer
"- O então candidato tinha conhecimento sobre os casos de trabalho escravo envolvendo a OAS?
Não, porque esse dinheiro era repassado para os candidatos citados.
- Por que esse dinheiro foi repassado a pelo menos outros sete candidatos? Essa doação influencia na sua atuação no cargo?
Não."

Paulo Skaf
“Todas as doações recebidas pela campanha de Paulo Skaf ao governo de São Paulo estão devidamente registradas na Justiça Eleitoral, que aprovou sua prestação de contas sem qualquer reparo, dentro das regras vigentes.”

CCM Construtora
Procurada pela reportagem, a empresa não respondeu às solicitações.

Cutrale
“Todas as doações realizadas pela Cutrale nos períodos de eleições sempre foram feitas na forma legal e transparente. Essas informações podem ser encontradas no próprio site do TSE.”

JBS Aves
“A JBS Aves foi incluída equivocadamente na lista suja do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em outubro de 2017 e excluída logo em seguida, após decisão judicial que comprova a inscrição indevida da Companhia no referido documento, conforme consta no site do próprio órgão (link para a lista atualizada: http://trabalho.gov.br/component/content/article?id=4428).

A Companhia e todas as suas marcas repudiam a utilização de mão de obra análoga à escrava e não compactuam com esse tipo de prática. Essa visão é comum a todos os níveis hierárquicos da companhia, tanto que as iniciativas de compliance, que tem total anuência do Conselho de Administração da companhia, preveem medidas para aperfeiçoar o cadastro de fornecedores para, a partir da identificação de irregularidades, excluí-los da lista.

A JBS reafirma seu compromisso com o fortalecimento das ações contra o trabalho escravo no Brasil e reforça que é signatária, desde 2007, do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, e que foi a primeira indústria de alimentos a se tornar membro do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPACTO) e, desde 2014, vem trabalhando em parceria com o instituto com ações inovadoras para detecção e combate ao trabalho escravo no Brasil.

A empresa esclarece, ainda, que todas as informações e documentos relacionados às doações feitas para as campanhas de 2014 foram entregues pelos colaboradores da J&F à Justiça.”

MRV
“Todas as doações feitas pela MRV a candidatos ou aos partidos políticos sempre observaram a legislação eleitoral brasileira. A doação à deputada Maria do Rosário, citada na publicação, ocorreu em 15/09/2014, conforme declaração prestada ao TSE.

No que tange à inclusão da MRV na “lista suja” do trabalho escravo, ocorreu indevidamente em dois momentos: nas atualizações de 31/07/2012 e 28/12/2012. Em ambos os casos, a exclusão foi proferida em decisão judicial do STJ.

A MRV ressalta ainda, que repudia o trabalho escravo e reafirma que os valores, princípios e missão da Companhia são incompatíveis com práticas trabalhistas irregulares que possam configurar trabalho análogo a escravidão ou a precarização da mão de obra.”

OAS
Procurada pela reportagem, a empresa não respondeu às solicitações.

Tiisa
Procurada pela reportagem, a empresa não respondeu às solicitações.

Tratenge
Procurada pela reportagem, a empresa não respondeu às solicitações.