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Decisão do STF a mães presas foi "histórica" e "tardio respeito às leis", dizem especialistas

Jéssica Monteiro, 24, com seu bebê de nove dias, é fotografada na ocupação em que vivia no Brás, região central da capital paulista - Gabriela Biló/Estadão Conteúdo
Jéssica Monteiro, 24, com seu bebê de nove dias, é fotografada na ocupação em que vivia no Brás, região central da capital paulista Imagem: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

20/02/2018 21h26

A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de conceder um habeas corpus coletivo em favor de mulheres grávidas ou com filhos de até 12 anos presas preventivamente foi aclamada como “histórica” e como algo que “fortalece o Estado democrático de direito” por partes diretamente envolvidas no julgamento.

A concessão do HC foi dada por 4 votos a 1, nesta terça-feira (20), pela 2ª Turma do Supremo. A ação havia sido proposta por advogadas do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) que atuaram na causa voluntariamente e também pela Defensoria Pública da União.

Líder do grupo, a advogada Eloísa Machado de Almeida, professora na FGV (Fundação Getúlio Vargas), avaliou que a decisão do STF representa uma oportunidade para que a mais alta corte do país corrija injustiças cometidas, principalmente, contra mulheres pobres que estão em situação de encarceramento provisório.

“Já há uma lista de mulheres identificadas nesse habeas corpus, fornecida por alguns Estados, mas a medida se estenderá, de ofício, inclusive às não listadas”, disse. “E não será essencial a intermediação de advogado para isso – qualquer autoridade que tenha conhecimento do HC vai poder pedir essa substituição da prisão em regime fechado pela domiciliar; muito provavelmente juízes farão revisão dos processos, já que os Estados têm 60 das para implementar a decisão”, completou.

Na avaliação da advogada, a concessão do benefício não representa impunidade, uma vez que a medida atende casos de presas ainda não condenadas e que cometeram crimes que não têm natureza violenta. Além disso, salientou, mudanças na própria legislação brasileira –no Código de Processo Penal, em 2006 –já previam o benefício a mulheres com filhos de até 12 anos, como ocorreu em dezembro passado, por exemplo, com a ex-primeira-dama fluminense Adriana Ancelmo.

“A decisão respeita a luta por direitos humanos, porque permite mostrar que o Judiciário, quando desafiado, é capaz de responder a demandas coletivas e graves como essa. Ao corroborar a aplicação da lei e de dispositivos constitucionais, isso representa o fortalecimento do nosso Estado democrático de direito”, afirmou a advogada. Ela completou: “Aqueles que pensam que isso trará impunidade estão completamente equivocados. Esse é o correto e tardio respeito às leis do nosso país.”

"Julgamento sem precedentes"

O advogado Pedro Hartung, coordenador do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, atuou no caso depois de o Supremo conceder à entidade o amicus curiae (amigo da corte) no processo, quando uma instituição e/ou pessoa externa à causa contribui com seus conhecimentos a fim de fornecer subsídios para decisões judiciais.

“Foi um julgamento histórico e sem precedentes no Brasil, tanto pela questão formal do processo – pela primeira vez um HC coletivo foi aceito pelo STF, o que abre a possibilidade de outros casos futuros – como pelo conteúdo material do julgamento”, declarou.

Hartung espera que a decisão do Supremo sensibilize a magistratura de primeira instância –onde boa parte dos casos de flagrante são convertidos em prisões preventivas, em regime fechado.

“A esperança é que os juízes se adequem à lei, a cumpram e possam conceder a domiciliar já nas audiências de custódia. É uma pena que Estados como São Paulo, onde está a maior parcela hoje da população carcerária do país, não tenham informado as presas nessa condição, mas a magnitude do HC as abrange”, definiu. “Tanto mulheres quanto crianças foram pacientes desse habeas corpus e poderão sair do cárcere. Estima-se hoje que haja cerca de 1800 crianças em todo o Brasil nessas condições”, concluiu.

"Como justificar que uma criança fique encarcerada?"

Também presente ao julgamento do HC, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo igualmente classificou a decisão de hoje como “histórica”, já que, segundo o órgão, havia a expectativa de que ele não seria aceito.

“Esse HC já ajuda muito, porque 60% das presas hoje estão na cadeia por tráfico, que é tido como  um crime sem violência ou grave ameaça, mas não são traficantes: são aliciadas por pessoas que ganham dinheiro com o tráfico e usam essas mulheres”, ponderou a defensora pública Maíra Coraci Diniz, ligada à questão carcerária.

Conforme a defensora pública, a mensagem política de uma decisão como a de hoje é “bem clara”. “Estamos falando de crianças, dos ‘brasileirinhos’, como mencionou o relator no voto, ministro Ricardo Lewandowski. Como alguém pode justificar que uma criança fique encarcerada? O que é mais custo para a sociedade: deixar essa mulher responder em liberdade por algo sem violência, ou o custo social de uma violência contra essa criança? Que futuro pode ter uma criança assim?”, indagou.

De acordo com a defensora, na principal porta de entrada das presas provisórias do Estado de São Paulo hoje, a Penitenciária Feminina de Franco da Rocha (Grande São Paulo), cerca de 60% é acusada de tráfico. Entre as que demandavam defensor público, a maioria, destacou, 70% se enquadravam no marco da Primeira Infância, ou seja, poderiam ir a prisão domiciliar nas condições reforçadas e aprovadas hoje pelo Supremo.

Grávida de 9 meses presa por furto de comida

Um dos casos em Franco da Rocha é o de Cristiane Ferreira Pinto, grávida de 9 meses e mãe de dois filhos --um de sete anos e outro de um--, presa preventivamente desde 28 de janeiro passado por furto de comida (queijo e carne) em um supermercado da cidade. Na audiência de custódia, o juiz responsável definiu que a gravidez da jovem "não gerou preocupação ou cuidado de não se expor" ao crime. Ela cumpria pena por outro furto em regime aberto.

“Ela não conseguia emprego e furtou porque tinha fome e precisava alimentar os filhos. A decisão do juiz foi desproporcional, porque ela cometeu um delito de pequena gravidade – e a prisão não oferece condições nem a um preso comum, que dirá a uma mulher com nove meses de gestação, já que não existe plantão médico à noite nessas unidades prisionais”, afirmou a advogada de Cristiane, Renata Ramos. Ela usará o HC de hoje para requerer a prisão domiciliar.

“A Justiça [de primeira instância] foi desumana. E o que me causa indignação é que esse pedido que constava do HC coletivo está expresso na lei, desde 2006, justamente para beneficiar essas mães e os filhos; me espanta a necessidade de julgamento coletivo de uma situação que está sedimentada pela lei”, lamentou.

Caso de Jéssica sensibilizou ministros, diz Condepe

Coordenador da Comissão da Infância e Juventude do Condepe (Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana), o advogado Ariel de Castro Alves afirmou que a repercussão sobre a prisão de Jéssica Monteiro, 24 --fotografada na semana passada em uma cela de uma delegacia em São Paulo com filho, recém-nascido –"sensibilizou os ministros do STF”.

“Nenhuma criança deveria viver em presídio ou cadeia, é prejudicial à formação e ao desenvolvimento delas. Mas é importante que as mães em prisão domiciliar sejam atendidas e visitadas por agentes de saúde e por profissionais dos Cras (Centros de Referências da Assistência Social), e, se necessário, acompanhadas pelos Conselhos Tutelares --exatamente para que a proteção das crianças seja garantida”, defendeu Neves.