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As estratégias do Haiti que estão sendo usadas na intervenção do Rio

Tropas do Exército patrulham a orla da praia de Copacabana, no Rio - ANDRé HORTA/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
Tropas do Exército patrulham a orla da praia de Copacabana, no Rio Imagem: ANDRé HORTA/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Luis Kawaguti

Do UOL, no Rio

02/04/2018 04h00

Reestruturação da polícia, operações militares combinadas com ações sociais, bloqueios em ruas, incursões em favelas e retirada de barricadas. Essas são algumas medidas que marcaram a participação do Brasil na missão de paz do Haiti (2004-2017) e reaparecem nas ações da intervenção federal no Rio de Janeiro.

O UOL ouviu militares que estiveram no Haiti e outros envolvidos com a intervenção no Rio para levantar semelhanças e diferenças entre as missões. Entre as diferenças, estão as leis e regras que embasam cada operação e o prazo para terminar. Veja a seguir o que foi feito no Haiti e agora se repete no Rio:

Policial haitiano e militar brasileiro em base na favela de Citè Soleil, em Porto Príncipe - Luis Kawaguti/Arquivo pessoal - Luis Kawaguti/Arquivo pessoal
Policial haitiano e militar brasileiro em base na favela de Citè Soleil, em Porto Príncipe
Imagem: Luis Kawaguti/Arquivo pessoal

Reestruturação da polícia

Quando a força de paz da ONU (Organização das Nações Unidas) chegou ao Haiti em 2004, as autoridades locais não sabiam sequer o número total de integrantes da Polícia Nacional do Haiti. O órgão era usado politicamente, não combatia o tráfico nem fiscalizava as fronteiras.

Em 13 anos de operações, a polícia local foi treinada, reequipada e teve seu efetivo elevado de 2.500 integrantes, em 2004, para 14 mil em 2017. No fim da missão, no ano passado, a polícia controlava as fronteiras e começava a combater o crime organizado.

O estado do Rio tem cerca de 54 mil policiais. A equipe de intervenção diz que sua prioridade é fazer mudanças estruturais nos órgãos policiais, melhorando a gestão, adquirindo armas e veículos e aumentando o efetivo nas ruas.

Uma fonte ligada à intervenção disse ao UOL que os interventores apostam na reestruturação das polícias como o principal legado da intervenção no Rio.

Em 2005, fuzileiro brasileiro observa fila em ação social em Bel Air, em Porto Príncipe - Luis Kawaguti / Arquivo pessoal - Luis Kawaguti / Arquivo pessoal
Em 2005, fuzileiro brasileiro observa fila em ação social em Bel Air, em Porto Príncipe
Imagem: Luis Kawaguti / Arquivo pessoal

Ações sociais

No Haiti, os mesmos militares que combatiam criminosos também distribuíam água, comida, material escolar, davam assistência médica e odontológica, assim como orientações de saúde, e cortavam o cabelo da população. Essas ações são chamadas na gíria militar de "aciso" (acrônimo para Ação Cívico Social) e foram realizadas centenas de vezes nos 13 anos de missão.

Em paralelo, militares distribuíam panfletos ou usavam alto-falantes para divulgar mensagens que reforçavam a ideia de apoio à população e incentivavam denúncias sobre o paradeiro de criminosos e armas.

Morador da Vila Kennedy recebe atendimento médico em mutirão organizado pela intervenção - Luis Kawaguti / UOL - Luis Kawaguti / UOL
Morador da Vila Kennedy recebe atendimento médico em mutirão organizado pela intervenção
Imagem: Luis Kawaguti / UOL

Esses dois elementos apareceram na intervenção, principalmente em ações na favela da Vila Kennedy, na zona oeste carioca.

Um general que serviu no Haiti e pediu para não ser identificado ponderou que essas ações podem ter eficácia mais limitada no Rio, onde circula o dinheiro do tráfico de drogas e os moradores de favelas têm um pouco mais de recursos do que tinham os haitianos.

Ele disse que, no Haiti, as ações não convenceram membros de gangues a abandonar o crime, mas aumentaram momentaneamente o número de denúncias e a simpatia dos haitianos pelas tropas.

3.mar.2018 - Militares realizam operação na Vila Kennedy, na zona oeste do Rio. A ação conta com veículos blindados e equipamentos pesados de engenharia - Brenno Carvalho/Agência O Globo - Brenno Carvalho/Agência O Globo
Militares removem barricada na favela da Vila Kennedy, na zona oeste do Rio
Imagem: Brenno Carvalho/Agência O Globo

Retirada de barricadas

Como ocorre em comunidades do Rio, o uso de barricadas era comum em favelas no Haiti. Sua função é atrasar o avanço das forças de segurança (e de criminosos rivais). No Rio, elas são feitas geralmente com vergalhões de ferro e barris cheios de concreto instalados em grandes buracos no asfalto. No Haiti, eram barreiras feitas com lixo e carcaças de carros ou buracos grandes o bastante para impedir a passagem de blindados.

A derrubada de barricadas, retirada de lixo e manutenção em ruas de favelas eram realizadas no Haiti para facilitar a entrada de veículos de patrulha. No Rio, centenas de barricadas foram destruídas desde o início da intervenção. Contudo, em algumas favelas onde os militares não permaneceram, elas foram reconstruídas.

Bloqueios em ruas e entrada em favelas

No começo da missão no Haiti, sem seu efetivo completo, as tropas da ONU iniciaram o trabalho controlando as principais vias da capital Porto Príncipe, fazendo bloqueios para revistar motoristas e pedestres. No Rio, os bloqueios estão sendo feitos em rodovias para tentar impedir a chegada de armas.

Em paralelo, os capacetes azuis se reuniam em grupos com até mil homens para entrar de surpresa em favelas haitianas e permanecer na região por algumas horas --a fim de procurar líderes de gangues, rebeldes e armas. No Rio, as Forças Armadas já participaram de ao menos oito incursões em favelas com características similares.

Militares brasileiros ocupando prédio usado como base rebelde em Bel Air, no Haiti - Luis Kawaguti / Arquivo pessoal - Luis Kawaguti / Arquivo pessoal
Militares brasileiros ocupando prédio usado como base rebelde em Bel Air, no Haiti
Imagem: Luis Kawaguti / Arquivo pessoal

Mas a estratégia sofreu mudanças no Haiti. Oito meses após o início das operações, os militares estabeleceram sua primeira base dentro da favela de Bel  Air. Ela se aproximava do conceito das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), estabelecidas no Rio a partir de 2008.

Depois, os militares começaram a atacar e ocupar temporariamente imóveis da favela que eram usados como bases por criminosos e rebeldes. Eles tomavam o ponto, permaneciam alguns dias, se retiravam e depois voltavam de surpresa, reiniciando o ciclo.

Alguns desses pontos foram depois transformados em bases fixas, chamadas de “pontos fortes”. Patrulhas partiam e retornavam desses locais, caracterizando uma presença permanente na favela. A estratégia foi repetida nas favelas até a capital ser estabilizada em 2007.

No Rio, a única favela onde os militares fizeram patrulhas diárias foi a Vila Kennedy. O plano, segundo eles, é sair depois que o batalhão da Polícia Militar local for reestruturado e assumir o patrulhamento.

As diferenças entre a missão do Haiti e a intervenção no Rio

Elas começam nos aspectos geográficos, populacionais e de efetivos militares. O Haiti tem área de 27,7 mil km² e população de 10,6 milhões de habitantes. O Rio tem 43,7 mil km² e 15,9 milhões de moradores.

A ONU possuiu até 8.900 militares e 4.300 policias civis internacionais no Haiti. Já no Rio o efetivo das Forças Armadas usado na intervenção é variável. Só o Exército tem 200 mil combatentes em todo o país e, em tese, não há limite para o uso de tropas.

Outra diferença é que no Rio, apesar de o Estado enfrentar dificuldades, há um governo instituído e instituições funcionando. Isso praticamente não ocorria no Haiti, onde o presidente havia caído e boa parte dos serviços básicos eram fornecidos por organizações internacionais.

22.mar.2018 - Homens das Forças Armadas atuam na Vila Vintém, em mais uma operação do Comando Conjunto da intervenção federal na segurança do Rio - Luís Kawaguti/UOL - Luís Kawaguti/UOL
Homens das Forças Armadas atuam na Vila Vintém, zona oeste do Rio
Imagem: Luís Kawaguti/UOL

Regras para uso das Forças Armadas

As normas que determinam como um militar das Forças Armadas deve se comportar em uma operação são chamadas de regras de engajamento, tanto no Brasil como na ONU. Em linhas gerais, no Haiti, elas eram baseadas no direito internacional e, no Brasil, se sustentam em leis nacionais, conforme explica uma fonte do Poder Judiciário envolvida com a intervenção.

Embora possuam semelhanças, as regras têm uma diferença básica: em geral, no Rio, os militares podem usar a força em ações de legítima defesa. No Haiti, eles tinham autorização para usar a força tanto para autodefesa quanto para cumprir objetivos da missão --como proteger a população e controlar o território. Na prática, isso significa que no Haiti as regras eram um pouco mais flexíveis.

26.mar.2018 - Intenso tiroteio na Comunidade Bateau Mouche no Rio de Janeiro (RJ), nesta segunda-feira (26). Milícianos da Comunidade da Chacrinha invadiram a região. A polícia faz operação na região. O carro utilizado pelos bandidos foi apreendido e guinchado. - Jose Lucena/Estadão Conteúdo - Jose Lucena/Estadão Conteúdo
Vestígios de tiroteio no bairro da Praça Seca, no Rio de Janeiro
Imagem: Jose Lucena/Estadão Conteúdo

Causas da violência

Segundo militares ouvidos pelo UOL, o tráfico de drogas no Rio têm características e consequências diferentes em relação ao Haiti.

O Haiti era uma rota de passagem de cocaína produzida nos países andinos para os Estados Unidos e para a Europa durante o período da missão de paz, segundo relatórios do UNODC, a agência de combate a crimes e drogas das Nações Unidas.

Mas o entorpecente não ficava no país e, por isso, a venda de drogas era limitada internamente. Assim, criminosos não precisavam defender pontos de venda de drogas nas grandes favelas da capital Porto Príncipe, segundo afirmou ao UOL um general brasileiro que comandou tropas no país.

Apesar de ser entreposto da rota de cocaína para a Europa, o Brasil também é considerado um grande mercado consumidor. Por isso, no Rio, traficantes defendem com armas seus pontos de venda contra rivais e contra ações da polícia.

No Haiti, havia diferentes gangues e movimentos rebeldes. No início da missão, ex-militares rebeldes lutavam pelo controle de cidades no interior do país. Já gangues de criminosos e de rebeldes apoiadores do ex-presidente Jean Bertrand Aristide lutavam pelo controle de favelas e atividades criminosas de abrangência regional e também contra a presença da ONU no país.

Duração das missões

O tempo de duração das missões é outra diferença crucial. A Minustah ficou por 13 anos no Haiti até as Nações Unidas decidirem que era hora de transferir recursos militares para países africanos em situação mais grave. Alguns dos indicadores foram o treinamento da polícia local, a redução dos índices de violência e a realização de três ciclos eleitorais completos sem quebra do processo democrático.

A intervenção no Rio está prevista para acabar no fim de 2018 --embora o presidente Michel Temer (MDB) já tenha levantado a possibilidade de encerrá-la em setembro. O prazo final foi dado pelo próprio presidente, cujo mandato acaba na mesma época. A possibilidade de renovação dependerá do novo governador do Rio e do próximo presidente do Brasil.