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Em dez anos, 53 milicianos citados em CPI foram assassinados no Rio

O agente Waguinho Desipe foi morto depois de ser indiciado pela CPI das Milícias - Fabiano Rocha - 22.jul.2008/Agência O Globo
O agente Waguinho Desipe foi morto depois de ser indiciado pela CPI das Milícias Imagem: Fabiano Rocha - 22.jul.2008/Agência O Globo

Flávio Costa

Do UOL, no Rio*

16/04/2018 04h00

A lista de citados pela CPI das Milícias, realizada há quase dez anos, serve hoje como um inventário da violência no Rio de Janeiro no período. De lá para cá, foram assassinados a tiros pelo menos 53 milicianos cujos nomes constavam na investigação parlamentar, encerrada em 14 de novembro de 2008.

O levantamento foi feito pelo UOL com base em inquéritos policiais, atestados de óbitos e ações penais que tramitam na Justiça do estado.

Do total de mortos, 25 estavam no rol de 226 indiciados pela CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito): aqueles contra os quais existiam provas suficientes de envolvimento em grupos paramilitares que controlam bairros e favelas cariocas, por meio da cobrança extorsiva de serviços, a exemplo de segurança compulsória, agiotagem, venda de gás de cozinha em botijões acima do preço de mercado e comércio ilegal de sinal de internet e TV a cabo, o "gatonet".

Esses grupos criminosos são formados, em boa parte, por agentes do Estado, a exemplo de policiais militares e civis, bombeiros, integrantes das Forças Armadas e agentes penitenciários, como revelou o relatório final da apuração conduzida pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Os outros 28 assassinados foram apontados como possíveis milicianos pela CPI, mas as suspeitas só foram comprovadas, posteriormente, por investigações da Polícia Civil e do Ministério Público.

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É possível que o número de assassinatos seja ainda maior, já que uma boa parte dos milicianos foi identificada na CPI apenas por apelidos e a reportagem encontrou casos de citados que morreram, mas não foi possível constatar se houve homicídio.

Mortes aconteceram em emboscadas

Os relatos policiais mostram que os homicídios aconteceram em emboscadas ou supostas tentativas de assalto. Em apenas um caso, a morte foi resultante de uma briga doméstica.

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O dia 5 de janeiro de 2009 registrou dois casos exemplares de como milicianos morrem no Rio de Janeiro.

Por volta das 14h daquele dia, o agente penitenciário Wagner Rezende de Miranda, 52, andava ao lado de um sobrinho pela rua dos Dentistas, em Campo Grande. O bairro da zona oeste é o berço do maior grupo miliciano da cidade: a Liga da Justiça.

Conhecido como Waguinho Desipe, ele se aproximava de sua casa quando foi atingido por balas de calibre 45 e de fuzil. Ele morreu na hora. O sobrinho escapou ao ser atingido no braço. Os tiros foram disparados por dois homens encapuzados que estavam dentro de um Fiat Siena prata. 

Segurança do ex-deputado Natalino José Guimarães, um dos chefes da milícia com quem chegou a ser preso, Waguinho Desipe era suspeito de ficar com parte do faturamento da taxa de segurança cobrada pela Liga de cooperativas de transporte alternativo da região. Ele também teria ajudado a Polícia Civil com informações sobre seus comparsas.

Horas antes, outro miliciano havia sido assassinado. O sargento bombeiro Carlos Alexandre Silva Cavalcante, o Gaguinho, morreu ao ser atingido também por tiros de fuzil e pistola, quando abastecia seu carro em um posto de gasolina, no bairro de Jacarepaguá, também na zona oeste. Os atiradores também estavam em Fiat Siena prata. Indiciado pela CPI, Gaguinho estava colaborando com a polícia.

Os dois crimes foram atribuídos pela polícia a um dos líderes da Liga da Justiça: o ex-PM Ricardo Teixeira Cruz, o Batman, que atualmente cumpre pena no sistema penitenciário federal.

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Prisão de líderes fomentou disputa de poder

Das 53 mortes identificadas pela reportagem, quase metade (25) aconteceu nos anos de 2009, 2010 e 2011, quando líderes de milícias indiciados pela CPI foram presos ou condenados judicialmente.

"As prisões e condenações judiciais de líderes milicianos provocaram uma disputa interna pelo comando dos grupos que culminou nas mortes concentradas nesses anos específicos", afirma o promotor de Justiça Luiz Antônio Ayres, que investiga os paramilitares há duas décadas.

Vereador Josinaldo Francisco da Cruz - Marcelo Franco/Extra - Marcelo Franco/Extra
Indiciado pela CPI das Milícias, ex-vereador Nadinho morreu em junho de 2009
Imagem: Marcelo Franco/Extra
A percepção de quem trabalhou na CPI era a de que havia "um processo de conflito aberto de disputa de milícia muito grave", como definiu, à época, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). Ele presidiu a CPI das Milícias e, por esta razão, recebe até hoje a proteção de seguranças armados, devido a ameaças de morte.

"Nossa lista de indiciados está se tornando um obituário", disse Freixo ao jornal "Extra", quando comentou o assassinato do ex-vereador do Rio Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho de Rio das Pedras, ocorrido no dia 10 de junho de 2009.

Também indiciado, Nadinho morreu após ser atingido por dez tiros de calibres 9 mm e 45, disparados por três homens encapuzados que invadiram o condomínio residencial do ex-parlamentar na Barra da Tijuca.

Apontado como chefe de milícia e mandante de assassinatos de rivais, Nadinho chegou a apontar 11 pessoas que o teriam ameaçado de morte, ao depor reservadamente em uma sessão da investigação parlamentar.

Atualmente, a Polícia Civil do Rio investiga se milicianos estão envolvidos no homicídio da vereadora Marielle Franco (PSOL), ocorrido no último dia 14 de março. A parlamentar foi assessora de Freixo e também trabalhou na CPI das Milícias.

Presença das milícias aumentou em dez anos

As mortes resultantes de disputas de milícias não pararam, mas diminuíram o ritmo. O último homicídio de um citado pela CPI das Milícias ocorreu em fevereiro. O promotor Luiz Antônio Ayres considera que o foco das milícias passou a ser a conquista de territórios controlados pelo tráfico de drogas.

"Desta forma, há menos mortes por confrontos internos do que aquelas resultantes da guerra contra os traficantes", afirma o promotor. Ele cita como exemplo os confrontos recentes entre milicianos e traficantes na Praça Seca.

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Reportagem do jornal "Estado de S. Paulo" mostrou que estudiosos estimam que as milícias estejam presentes em mais de 200 locais do Rio: bairros da zona norte e oeste da capital e por municípios da região metropolitana e da Baixada Fluminense em direção a Nova Iguaçu e São João de Meriti. 

Há dez anos, a CPI havia detectado cerca de 170 áreas dominadas pelos grupos paramilitares.

Para o delegado aposentado Vinícius George, que coordenou os trabalhos investigativos da CPI das Milícias, a repressão policial provocada pela repercussão da investigação parlamentar obrigou os milicianos a fazer um "recuo estratégico".

"Decidiram matar menos, matar à noite, desaparecer com pessoas incômodas, em vez de promover seguidas execuções em praças públicas como faziam antes", afirma George. "Porém, os negócios das milícias cresceram porque prender os líderes não basta. O Estado não as atingiu nas questões econômicas nem procurou retomar os territórios controlados por elas."

Colaboraram Lucas Borges Teixeira, de São Paulo, e Paula Bianchi, do Rio.