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Omissão do Estado permitiu avanço das milícias nos últimos 10 anos, dizem Freixo e relator da CPI

Os deputados Marcelo Freixo (PSOL) e Gilberto Palmares (PT) durante a CPI das Milícias, em novembro de 2008 - Urbano Erbiste/CPDoc JB/Folhapress
Os deputados Marcelo Freixo (PSOL) e Gilberto Palmares (PT) durante a CPI das Milícias, em novembro de 2008 Imagem: Urbano Erbiste/CPDoc JB/Folhapress

Flávio Costa

Do UOL, no Rio

17/04/2018 04h00

A história da CPI das Milícias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro se conta por meio de números. 

Em 14 de novembro de 2008, a investigação parlamentar divulgou o resultado de cinco meses de trabalho: um total de 226 pessoas foram indiciadas, recomendou-se que outras 879 fossem investigadas e foram recebidas 1.162 denúncias que detalhavam como milicianos controlavam, por meio da intimidação e do terror, cerca de 170 territórios no estado.

De acordo com levantamento feito pela reportagem do UOL, pelo menos 61 dos indiciados foram condenados judicialmente por crimes como associação criminosa, porte ilegal de arma e homicídios. Entre eles, os considerados chefes de milícias, a exemplo dos ex-parlamentares Natalino José Guimarães (atualmente em uma prisão federal) e seu irmão Jerônimo Filho, o Jerominho (que cumpre pena em um presídio do Rio).

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No relatório final, constavam também exatas 58 propostas de enfrentamento a essas facções criminosas que, em sua maioria, foram ignoradas pelo poder público, a exemplo da criação de uma câmara de repressão ao crime organizado ou a legalização do transporte alternativo na cidade.

Desta forma, a omissão do Estado permitiu a expansão das milícias no Rio de Janeiro, apesar dos resultados alcançados pela investigação parlamentar. É o que afirmam os deputados estaduais Marcelo Freixo (PSOL) e Gilberto Palmares (PT), respectivamente presidente e relator da CPI das Milícias, em entrevistas ao UOL.

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UOL - Dez anos depois da CPI das Milícias, constatou-se que esses grupos criminosos aumentaram o número de territórios controlados no Rio. Como se deu essa expansão em sua opinião? Como combatê-la?

Marcelo Freixo - As milícias cresceram por uma razão: os sucessivos governos do Rio não tiraram das milícias o domínio territorial e as fontes de riqueza econômica. A milícia é um grupo criminoso que busca dinheiro, busca riqueza através de seu controle territorial. Os controles das vans, do "gatonet", do gás, da extorsão direta não foram retirados das milícias. Houve a prisão dos líderes milicianos por meio de uma ação conjunta da CPI, do Ministério Público e da Polícia Civil, mas milícia é máfia. Depois das prisões, não se fez aquilo que o relatório sugeria, que era aquela retirada do poder econômico. Eles continuaram ganhando dinheiro e isso gerou a conquista de mais territórios. Hoje existem mais territórios controlados pela milícia do que pelo próprio varejo da droga. 

Gilberto Palmares - O mérito da CPI foi pautar no Rio a necessidade do debate e do combate as milícias, desmascarando setores que diziam aceitar milícias para combater o tráfico. O problema é que, terminada a CPI, o debate quase acabou. O Estado não estabeleceu qualquer prioridade no enfrentamento das milícias. Acho que o problema central é que o enfrentamento às milícias em nenhum momento foi tido com prioritário pelos Poderes Executivo e Judiciário, nem pelo Ministério Público.

Quais foram as falhas cometidas pela política de segurança pública que permitiram a expansão das milícias nos últimos dez anos?

Freixo - Houve não só uma falha na política de segurança pública, mas de todo o Estado brasileiro. O governo federal demorou muito para tipificar o crime de milícia. Os bombeiros continuam sendo bombeiros militares e tendo porte de arma, a Prefeitura do Rio de Janeiro não fez o que deveria ser feito em relação às vans e à melhoria do transporte público, para que o transporte alternativo pudesse ter um papel menor na vida das pessoas. O serviço de inteligência da polícia não investigou e não fortaleceu a Draco, a delegacia de combate ao crime organizado, pelo contrário, essa delegacia foi sucateada. O crescimento das milícias é uma responsabilidade muito ampla de vários entes do Estado e não pode só ser visto em termos de falha da política de segurança pública. Milícia é Estado leiloado. 

Palmares - Um dos principais e mais graves problemas das milícias foi a presença de integrantes das forças de segurança nas mesmas. O enfrentamento a essa questão não foi feito e não é feito adequadamente pelos gestores maiores da segurança pública. Por outro lado, existe a cultura do enfrentamento e confronto armado, especialmente em comunidade e bairros populares. Na CPI lutei sempre para que fossem chamados à responsabilidade empresários de áreas como telecomunicações, gás, transportes. Milícia e tráfico têm seus ganhos e força também amparados na exploração direta ou indireta sob coação de várias atividades econômicas. Empresários sabem disso e, por omissão ou às vezes até por interesse, compactuam com essas práticas.

Considera que a infiltração de milicianos em cargos políticos cresceu nesses dez anos, apesar das condenações impostas a parlamentares investigados pela CPI?

Freixo - Milícia é o único grupo criminoso que transforma o domínio territorial em domínio eleitoral. O varejo das drogas não tem essa capacidade de eleger gente e ter influência política. Já a milícia tem projeto de poder, por isso que ela se aproxima e se identifica com a prática das máfias. Por isso também que não adianta só prender os líderes. Uma coisa que eles mudaram nestes dez anos é que os donos de milícias deixaram de ser candidatos. Ainda existem, mas são poucos. Na época da CPI das Milícias, todos os donos de milícias eram deputados ou vereadores. Isso diminuiu muito. Hoje em dia, eles apoiam candidatos. A milícia continua a eleger prefeitos, governador e senadores no Rio de Janeiro.

Palmares - Não dá para perceber. Talvez por conta de as estratégias terem mudado. As milícias passaram a operar com candidatos dóceis, em vez de milicianos diretamente.

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Milicianos e traficantes se aproximaram em determinadas localidades. Na sua opinião, quão perigosa é essa associação?

Freixo - Essa associação vem acontecendo e também outra situação acontece: a milícia sempre dominou o comércio de gás. Nos últimos tempos, o tráfico também vem dominando o comércio de gás. Nunca teve tráfico de drogas em áreas de milícias, mas ultimamente isso vem acontecendo. Mais do que eles atuarem juntos, um grupo vem absorvendo as práticas do outro. Práticas que eram lucrativas estão sendo adotadas pelos dois grupos. Porque tudo é por grana, a milícia não tem um projeto de poder pelo poder. O projeto de poder é resultante de uma motivação financeira. O que move a milícia é dinheiro. Em alguns lugares têm acordos entre traficantes e milicianos porque são grupos criminosos e eles sempre têm a capacidade de se entenderem.

Palmares - Esse é um drama e um desastre. Essa aliança torna a população pobre mais oprimida ainda. O tráfico, aliado assumidamente às milícias, expulsa dos locais de moradias pessoas que não conciliam com as mesmas.

Considera ser necessária uma nova CPI das Milícias? Por qual motivo?

Freixo - Se uma nova CPI das Milícias fosse feita hoje, iria recomendar as mesmas propostas de dez anos atrás. Eu acho que não precisamos ter esse trabalho. Acho que cabe ao poder público entender como e quanto as milícias cresceram e pegar aquelas recomendações da CPI e colocá-las em prática. Assim as milícias vão sentir o baque.

Palmares - Considero que o grupo político que deu contribuição importante com a CPI precisa assumir com mais permanência seu papel de combate à milícia, não apenas em áreas populares, mas em comunidades de classes médias. Mas, neste momento, falta como já disse uma atuação mais efetiva dos outros agentes do Estado, inclusive o Judiciário e o MP. Por outro lado não haverá sucesso no enfrentamento ao novo estágio das milícias sem que haja a presença do Estado nas comunidades. O Estado precisa criar uma política pública efetiva que possibilite novas perspectivas para adolescentes e jovens dessas comunidades.