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'Será que vou ser triste para sempre?': como a exclusão social se assemelha à dor física

"Será que vou ser triste para sempre, viver na rua para sempre?", questiona José*, que há dois anos vive nas ruas de São Paulo  - Ricardo Matsukawa/UOL
'Será que vou ser triste para sempre, viver na rua para sempre?', questiona José*, que há dois anos vive nas ruas de São Paulo Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

17/06/2018 04h00

José* tem 27 anos e, há dois, desde que se desentendeu seriamente com a família, mora nas ruas de São Paulo. Há alguns meses, diz ter se envolvido em uma briga com um policial de folga. Que, segundo José, voltou depois com seus colegas para revidar o ataque do morador de rua. “Fiquei internado de tanto que me bateram”, lembra. A experiência foi literalmente dolorida. Mas, segundo ele, não se compara à dor que sente diariamente pelo fato de viver na rua.

Aquela dor [física] já acabou. Machucou e depois sarou. Mas a outra não passa, de não darem emprego, de acharem que todo mundo nessa situação é drogado, enche a cara, é sem futuro

José, morador de rua

No dia da entrevista, quando a reportagem o encontrou em uma área ocupada por sem-teto, ele conversou sentado dentro de sua barraca, de onde exalava o cheiro do banho recém-tomado em um núcleo de apoio a moradores de rua. Exibiu suas poucas roupas, um par de tênis, um violão e uma pasta de documentos que ele guarda em seu iglu. Tinha também certificados profissionais --de ajudante de cabeleireiro e eletricista--, mas diz que sua condição de sem-teto o impede de manter uma atividade profissional.

“Por mais que você esteja limpo, bem-vestido, com as unhas cortadas, não vão deixar você trabalhar porque mora na rua. Você tenta levantar e querem te derrubar. Penso que cada caso é um caso, mas desanimo sabendo que tem gente nessa situação por anos, que fica num estado de mendigo mesmo. Aí penso: será que vou ser triste para sempre, viver na rua para sempre?” 

Morador de rua, reportagem sobre dor social  - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
José vive em uma barraca, onde guarda suas roupas, seu violão, documentos e certificados de cursos profissionalizantes
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

As situações doloridas às quais José se refere podem não ser apenas maneira de falar. Estudos acadêmicos publicados nos últimos anos --por pesquisadores da Universidade de Michigan e da Universidade da Califórnia, por exemplo-- apontam que sentimentos de exclusão e rejeição social atuariam sobre a mesma região do cérebro ativada pela dor física, o córtex cingulado anterior, criando uma experiência parecida nesses diferentes casos.

A sensação ganha o nome dor social, um conceito sobre a qual a SBED (Sociedade Brasileira para Estudo da Dor) pretende chamar a atenção, com uma campanha a ser lançada no segundo semestre. “Nosso propósito é ajudar os pacientes a encontrarem a melhor maneira de enfrentar suas dores. Se a dor social está entre elas, por que não [falar sobre isso]?”, diz a psicóloga Dirce Perissinotti, diretora administrativa da SBED, que reúne profissionais de diferentes áreas para estudar o tema.

“Isso nos encoraja a pensar com mais cuidado sobre as consequências da rejeição social. Enquanto machucar fisicamente alguém é condenável e até punido por lei, o ato de rejeitar uma pessoa geralmente não é visto da mesma forma. [...] Nossa percepção e ‘regras’ ligadas à dor social podem estar equivocadas, pois essas experiências podem ser tão prejudiciais quando às da dor física”, resume Naomi Eisengerger, professora da Universidade da Califórnia na área de psicologia social, em uma de suas pesquisas sobre o assunto.

Coordenador do grupo de dor do Hospital das Clínicas e professor de neurologia da USP (Universidade de São Paulo), o médico neurologista Daniel Ciampi fala em “confusão de nomes” quando se trata desse conceito. Se fosse exatamente igual, explica, não daria para distinguir uma coisa da outra: picar o dedo ou sofrer bullying, portanto, seriam percebidos da mesma maneira. Mas existe, sim, um compartilhamento dos componentes da experiência de dor: “Uma boa parte da circuitaria usada pelo cérebro nas situações de dor física também é recrutada em situações de exclusão, de preconceito, de perda”, exemplifica. 

Dores não necessariamente associadas a lesões físicas, como nas costas e enxaqueca, estão entre as que mais levam pacientes aos médicos. Esses incômodos não são visíveis, mas sim identificados e relatados por quem os sente, como acontece com a dor social

Daniel Ciampi, coordenador do grupo de dor do HC

“Eu queria ser diferente”

Samuel Gomes, 30, considera trazer consigo as marcas da exclusão da infância, adolescência e vida adulta. Isso porque sua história --como a de muitos brasileiros de periferia-- junta diversos elementos capazes de transformar alguém em alvo. 

Samuel Gomes, autor do livro Guardei no Armário  - Arquivo pessoal/Marco Torelli - Arquivo pessoal/Marco Torelli
Samuel Gomes diz que sensação de não pertencimento é constante em sua vida
Imagem: Arquivo pessoal/Marco Torelli

Ele nasceu em um bairro de São Paulo onde ouvia que muitos como ele não chegavam vivos aos 20 anos. É negro. De família religiosa, descobriu cedo que não se encaixava naquilo que pregava a igreja evangélica. Na escola, era alvo de chacota por seu jeito afeminado ou pela aparência física --a cor, a altura, a magreza. Sofreu ao perceber que sua sexualidade era “diferente” e duramente condenada pelos pastores. Formou-se como designer gráfico com bolsa do Prouni e hoje trabalha em ambientes dominados por profissionais brancos.

A sensação de não pertencimento e a dor que ela causa, diz, são constantes em sua vida.

“Quando eu tinha uns 12 anos, me lembro de um dia ficar triste, começar a chorar muito, aparentemente do nada, e meus pais não saberem por quê. Eu tinha essa sensação de querer ser diferente, mas também a consciência de que isso era impossível”, contou ele, que relata no livro “Guardei no Armário” o desafio de aceitar sua raça e sexualidade. “A vida me bateu tanto que acabei criando um alter ego mais sério para ouvirem o que tenho a falar. Eu me blindei para me respeitarem.”

O tratamento que Samuel encontrou para aliviar esse seu desconforto foi a terapia --que ele reconhece ser um privilégio ao qual muitos não têm acesso. E também a criação de um canal no YouTube, que ajudou a inseri-lo na comunidade LGBTTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos).

Dor retroalimentada

Além da percepção das dores social e física ser considerada parecida, a psicóloga Dirce Perissinotti afirma que elas podem se retroalimentar. Assim, aqueles sentimentos negativos tornam o desconforto físico ainda maior, enquanto fica mais difícil tratar problemas de dor em pessoas que sofrem exclusão ou rejeição.

Estudo publicado em 2015 por psicólogos das universidades de Stanford e do Arizona fala isso: que dor física e fatores sociais demonstram uma relação de influência mútua. E que os tratamentos para promover o bem-estar de pacientes com dor crônica devem abordar não somente os esforços de adaptação àquela dor, mas também ao contexto social em que estão inseridos.

Sempre proponho atividades grupais aos pacientes [com dor], que acabam criando vínculo com pessoas em situações semelhantes à sua. Com isso eles desenvolvem mecanismos adaptativos, enfrentando os problemas de uma maneira melhor

Dirce Perissinotti, psicóloga e diretora da SBED

É o que fez Samuel ao usar um canal de vídeos para compartilhar suas experiências. Ou diversos outros grupos, que podem ir das associações de amigos de bairro àqueles que curtem assuntos parecidos em sites de relacionamento. “O ser humano é essencialmente grupal, e os sentimentos de isolamento e não pertencimento são devastadores. Por isso a importância de mecanismos sociais que promovam o engajamento entre as pessoas, independentemente do tipo de grupo”, reforça a psicóloga da SBED. 

Manoel Lucimar dos Santos, voluntário do Cisarte  - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
Manoel dorme em albergues e já entrevistou moradores de rua para uma pesquisa
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Sendo assim, alguns especialistas acreditam que reforçar e criar esses laços serviria de antídoto para a dor social. E também de remédio --acompanhado de outros tipos de tratamento-- no caso de dores físicas já existentes.

Como José, o fotógrafo Manoel Lucimar dos Santos, 52, já sentiu na pele a dor da exclusão. Depois de uma separação, ficou sem ter onde morar e, em 2013, passou a dormir em albergues --situação que se mantém até hoje (a cada três meses, prazo máximo em cada endereço, ele troca de abrigo). Voluntário do Cisarte (Centro de Inclusão pela Arte, Cultura, Trabalho e Educação), em São Paulo, participou em 2015 de uma pesquisa como entrevistador de moradores de rua. Com base no que viveu e também no que ouviu, deu o seguinte depoimento: 

Quem tem uma estrutura busca apoio nos familiares, amigos, no trabalho, estudo. Quem não tem agrava mais a situação buscando consolo no álcool e nas drogas. A dor da exclusão é muito cruel. Pode levar ao suicídio: seja por essas formas de dependência ou saltando de um viaduto

Manoel Lucimar, fotógrafo e voluntário do Cisarte

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* O nome foi alterado para evitar a identificação do entrevistado.