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Em troca de camisas a times de várzea, poeta leva jogadores a sarau em SP

Sarau da Cooperifa no Bar do Zé Batidão, no Jardim Guarujá, zona sul de São Paulo - Ricardo Vaz/Cooperifa
Sarau da Cooperifa no Bar do Zé Batidão, no Jardim Guarujá, zona sul de São Paulo Imagem: Ricardo Vaz/Cooperifa

Luís Adorno

Do UOL, em São Paulo

12/12/2018 12h30

"Muitas vezes, quem tem a infância roubada acaba furtando o futuro de alguém." A frase foi escrita pelo poeta e produtor cultural Sérgio Vaz, 54, idealizador do sarau Cooperifa e um dos ganhadores do prêmio Santo Dias de Direitos Humanos, entregue na noite desta segunda-feira (10), na Alesp (Assembleia Legislativa de SP). A data da premiação coincidiu com a mesma em que o poeta comemorou os 30 anos do lançamento de seu primeiro livro.

Toda noite de terça-feira, um dos principais saraus de São Paulo ocorre religiosamente a partir das 20h45, no Bar do Zé Batidão, no Jardim Guarujá, região que fica entre o Parque Santo Antônio e o Jardim São Luiz, no extremo sul da capital paulista. O sarau da Cooperifa, que existe desde 2001, foi criado em Taboão da Serra, na região metropolitana, onde o escritor mora.

Segundo dados da SSP (Secretaria da Segurança Pública), a região entre Capão Redondo e Jardim São Luiz é uma das mais violentas da cidade. Atlas divulgado pela prefeitura em 2016 aponta que a região figura entre as piores da cidade no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Berço do Racionais MC's, a região também passou a ser reconhecida como a casa da "literatura periférica". 

10.dez.2018 - Poeta Sérgio Vaz recebe o Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos na Alesp - 10.dez.2018 - Luís Adorno/UOL - 10.dez.2018 - Luís Adorno/UOL
Poeta Sérgio Vaz recebe o Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos na Alesp
Imagem: 10.dez.2018 - Luís Adorno/UOL

"Esse é o meu lugar. A gente que vive lá, não vê toda essa violência. Até porque a gente está inserido nela. Em 1996, aquela região foi eleita pela ONU como o lugar mais violento do mundo. Então, é lá que nós temos que fazer as coisas. Sou de uma época que a gente queria mudar da periferia. Hoje, a gente quer mudar a periferia", afirmou Vaz ao UOL.

"É aqui que vamos viver, que vamos criar nossos filhos, então, temos que melhorar o lugar. E a cultura é um braço forte", complementou. 

Um dos versos mais conhecidos de Vaz aponta que "milagres acontecem quando a gente vai à luta". Como forma de colocar o que escreveu na prática, Vaz decidiu estampar camisetas de times da várzea de São Paulo. Em troca do jogo de camisas, os jogadores devem ir ao sarau semanalmente. Atualmente, a Cooperifa patrocina 10 times.

"O futebol de várzea é uma das maiores culturas que existe na periferia. Sou amante do futebol de várzea. Você percebe um pouco o abandono com que eles estão. Um dia, falei para um cara: 'pô, vocês não colam no sarau', ele respondeu que era coisa de intelectual. Falei pra ele: 'se vocês colarem, dou um jogo de camisas. Tem que colar lá um mês'. Para minha surpresa, eles começaram a frequentar e a notícia foi se espalhando", disse.

Para explicar como consegue segurar a permanência dos jogadores dentro do Bar do Zé Batidão, um outro verso de Vaz, escrito com base em uma visita a uma unidade da Fundação Casa de São Paulo, pode exemplificar:

"- Quem gosta de poesia?
- Ninguém, senhor.
Aí recitei Negro Drama [letra de rap] dos Racionais.
- Senhor, isso é poesia?
- É.
- Então nóis gosta.
É isso. Todo mundo gosta de poesia. Só não sabe que gosta."

Time da várzea CDHU C Jd. São Luiz durante jogo, com patrocínio do sarau Cooperifa - 29.set.2013 - Leonardo Soares/Folhapress - 29.set.2013 - Leonardo Soares/Folhapress
Time da várzea CDHU C Jd. São Luiz durante jogo, com patrocínio do sarau Cooperifa
Imagem: 29.set.2013 - Leonardo Soares/Folhapress

"A arte tem o poder de resgatar a cidadania da pessoa. Tem pessoa que nunca tinha lido um livro e que começou a ler no sarau. Muita gente que chegou no sarau não sabia o que era poesia. Lá descobriu e começou a ter sua própria identidade, porque a literatura tem esse poder", disse o poeta. 

Quem lê, enxerga melhor. E, enxergando melhor, o cara descobre o por quê ele mora na periferia. Quais são seus direitos, quais são seus deveres, por que é violento, por que não é, por que algumas pessoas têm mais. O conhecimento tem esse poder

Sérgio Vaz, poeta e idealizador do Cooperifa

"A cultura chegou em mim e salvou a minha vida. Quando li meu primeiro livro, quando eu li Don Quixote, até então, eu achava que o problema era meu, não era do mundo. Descobri que o problema é do mundo, não meu. Porque você é um sonhador. E daí que você é um sonhador? Isso me trouxe dignidade, trouxe respeito a mim", afirmou. O poeta é mencionado por amigos como "Don Quixote de la Perifa".

Vaz é autor de oito livros: "Subindo a ladeira mora a noite" (1992), escrito com Adrianne Muciolo; "A margem do vento" (1995); "Pensamentos vadios" (1999); "A poesia dos deuses inferiores" (2004); "Colecionador de pedras" (2006); "Cooperifa - Antropofagia Periférica" (2008); "Literatura Pão e Poesia" (2011); e "Flores de alvenaria" (2016).

Na Cooperifa, ele e outros poetas declamam suas poesias. O movimento que criou se espalhou pela cidade e influenciou dezenas de outros saraus que começaram a surgir e a ocupar bares e espaços públicos.

Além do Sarau, Vaz foi idealizador dos projetos "Cinema na Laje", o "Café Literário" e o "Poesia no ar". Recentemente, ele circula em escolas públicas das periferias do país com o projeto "Poesia contra a violência", debatendo cultura e cidadania com adolescentes.

"Quando eu comecei a colar, abriu minha mente"

Na noite desta terça-feira (11), em sarau de comemoração dos 30 anos de carreira do poeta, jogadores de times que Vaz patrocina foram ao Bar do Zé Batidão. Parte deles só começou a saber o que era sarau depois que o escritor os chamou para ir ao local. Alguns deles, depois de descobrirem que gostavam de poesia, passaram a escrever versos e narrar a todos os presentes.

11.dez.2018 - Alisson Santos Silva, 24, jardineiro e meia-atacante do time R12, durante sarau da Cooperifa - 11.dez.2018 - Luís Adorno/UOL - 11.dez.2018 - Luís Adorno/UOL
Alisson Santos Silva, jardineiro e meia-atacante do time R12, durante sarau da Cooperifa
Imagem: 11.dez.2018 - Luís Adorno/UOL

Um exemplo é Alisson Santos Silva, 24, jardineiro e meia-atacante do time R12 desde 2010. "Venho no sarau do Sérgio Vaz desde 2014. Na primeira vez que vim, já recitei uma poesia. Escrevi com uma menina da minha sala, que compomos juntos, vim aqui e mandei. Na hora, fiquei travado, foi muito difícil de sair, mas agora é tranquilo. Hoje, eu escrevo umas poesias. Então, me sinto um poeta também", disse, orgulhoso.

Seu colega de time, o zagueiro Felipe Bruno Daniel, 25, auxiliar administrativo, costuma ir ao sarau só para ouvir os artistas que ali se apresentam. Mas agradece por descobrir do que se trata um sarau.

11.dez.2018 - Gabriel dos Santos Silva, 21, e Felipe Bruno Daniel, 25, jogadores do time de várzea R12 durante o sarau da Cooperifa - 11.dez.2018 - Luís Adorno/UOL - 11.dez.2018 - Luís Adorno/UOL
Gabriel dos Santos Silva e Felipe Bruno Daniel jogadores do time de várzea R12 durante o sarau da Cooperifa
Imagem: 11.dez.2018 - Luís Adorno/UOL

"Quando comecei a colar, abriu minha mente para muita coisa: como tratar as pessoas, ter uma ideia melhor sobre tudo o que acontece na comunidade", afirmou.

O lateral direito do R12 Gabriel dos Santos Silva, 21, que trabalha como ajudante de jardineiro, ressalta a importância do esporte como produtor de cultura. "A gente começou a conhecer aqui através do esporte. Da primeira vez, disseram para gente 'vamos colar lá na Cooperifa, que vamos mandar umas poesias lá e vai ser da hora'. Depois da primeira vez, nunca mais deixamos de vir", disse. 

Antes, eu nem sabia o que era um 'sarau'. Só vindo mesmo para saber o quão legal é. Eu só ouço as poesias, mas eu acho muito da hora.

Gabriel dos Santos Silva, lateral do time de várzea R12

O Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos

10.dez.2018 - Sérgio Vaz ao lado de integrantes da Cooperifa, após receber prêmio Santo Dias de Direitos Humanos, na Alesp - 10.dez.2018 - Luís Adorno/UOL - 10.dez.2018 - Luís Adorno/UOL
Sérgio Vaz ao lado de integrantes da Cooperifa, após receber prêmio Santo Dias de Direitos Humanos, na Alesp
Imagem: 10.dez.2018 - Luís Adorno/UOL

Santo Dias da Silva, que dá nome ao prêmio, foi um líder operário sindical morto aos 37 anos por um policial militar durante uma greve na Capela do Socorro, zona sul de São Paulo, em 30 de outubro de 1979.

O policial que atirou contra ele foi condenado a seis anos de prisão, mas, um ano depois da condenação, foi absolvido em decisão unânime pelo Tribunal de Justiça Militar e o caso foi encerrado. O prêmio marca a data da assinatura da carta dos Direitos Humanos.

Durante a premiação, o escritor dedicou a premiação às mães que perderam seus filhos de forma violenta. "Venho de um lugar onde as pessoas não fazem nem 30 anos de vida, e estou comemorando 30 anos de carreira. Quero oferecer a todas as mães que inundam a represa do Guarapiranga com suas lágrimas por conta dos seus filhos mortos. A todas as pessoas conhecidas e desconhecidas que lutam para que esse mundo se torne um pouco melhor, apesar de todas as pessoas não deixarem", declarou.

Por fim, recitou o poema "Novos Dias":

"Este ano vai ser pior
Pior para quem estiver no nosso caminho
Então, que venham os dias
Um sorriso no rosto e os punhos cerrados, que a luta não para
Um brilho nos olhos, que é para rastrear os inimigos
Mesmo com medo, enfrente-os
É necessário o coração em chamas para manter os sonhos aquecidos
Acenda fogueiras
Não aceite nada de graça. Nada
Até o beijo só é bom quando conquistado
Escreva poemas, mas se te insultarem, recite palavrões
Cuidado, o acaso é traiçoeiro e o tempo é cruel
Tome as rédeas do teu próprio destino
Outra coisa: pior que a arrogância é a falsa humildade
As pessoas boazinhas também são perigosas
Sugam energia e não dão nada em troca
Fique esperto: amar o próximo não é abandonar a si mesmo
Para alcançar utopias, é preciso enfrentar a realidade
Quer saber quem são os outros? 
Pergunte quem é você
Se não ama a tua causa, não alimente o ódio
Por favor, gentileza gera gentileza 
Obrigado
Os erros são teus, assuma-os
Os acertos também são teus, divida-os
Ser forte não é apanhar todo dia, nem bater de vez em quando
É perdoar e pedir perdão, sempre
Tenho más notícias
Quando o bicho pegar, você vai estar sozinho
Não cultive multidões
Qual a tua verdade? Qual a tua mentira? 
Teu travesseiro vai te dizer
Prepare-se
Se quiser realmente saber se está bonito ou bonita, pergunte aos teus inimigos
Nesta hora, eles serão honestos
Quando estiver fazendo planos, não esqueça de avisar aos teus pés
São eles que caminham
Se vai pular sete ondinhas, recomendo que mergulhe de cabeça
Muito amor, mas raiva é fundamental
Quando não tiver palavras belas, improvise: diga a verdade
As manhãs de sol são lindas, mas é preciso trabalhar também nos dias de chuva
Abra os braços
Segure na mão de quem está na frente e puxe a mão de quem estiver atrás
Não confunda briga com luta
Briga tem hora para acabar, a luta é para uma vida inteira
O Ano Novo tem cara de gente boa, mas não acredite nele Acredite em você
Feliz todo dia."