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Distante de festa para Bolsonaro, famílias esperam julgamento da boate Kiss

27.jan.2013- Fachada da boate Kiss, em Santa Maria, após o incêndio - Juliana Mendes/ Futura Press
27.jan.2013- Fachada da boate Kiss, em Santa Maria, após o incêndio Imagem: Juliana Mendes/ Futura Press

Vitor Pamplona

Colaboração para o UOL, em São Paulo

15/06/2019 04h00

Uma carreata saindo da antiga base aérea e bandeiras verde-amarelas em frente às casas fazem parte da recepção que apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PSL) prepararam para hoje em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.

Em meio à crise provocada pelas conversas vazadas do ministro Sergio Moro com o procurador Deltan Dallagnol, Bolsonaro participa à noite da Festa Nacional da Artilharia (Fenart), organizada pelo Exército na cidade gaúcha. Fechada ao público, a solenidade militar homenageia o marechal Emílio Luiz Mallet, patrono da artilharia brasileira, e inclui a encenação da Batalha de Tuiuti, a mais sangrenta da história da América do Sul e decisiva para os rumos da Guerra do Paraguai.

Enquanto o Exército relembra seus heróis e mortos no conflito, um outro memorial em Santa Maria espera para ser erguido no lugar do que restou da boate Kiss, no centro da cidade.

Seis anos e meio depois do incêndio na casa noturna, os parentes das vítimas vivem dias de ansiedade às vésperas do julgamento que pode definir se os sócios da boate, Elissandro Sphor e Mauro Hoffmann, além dos músicos Luciano Bonilha e Marcelo de Jesus, serão levados a júri popular pela morte de 242 pessoas e tentativa de homicídio de outras 636.

O caso teve uma reviravolta em dezembro de 2017, quando o Primeiro Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu, após empate no número de votos dos desembargadores, que os acusados deveriam ser julgados por crime culposo (sem intenção), descartando o júri popular e penas mais duras.

O Ministério Público gaúcho busca reverter a decisão e sustenta que os réus assumiram o risco de provocar as mortes --a estrutura inadequada para emergências e uso de fogos de artifício sob espuma tóxica e inflamável estão entre os argumentos da acusação. O recurso apresentado ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) será julgado na próxima terça (18).

Durante a visita de Bolsonaro a Santa Maria, não está previsto nenhum encontro com famílias de mortos na tragédia. "Em nenhum momento passou pela nossa cabeça fazer contato com o presidente para tentar algum tipo de apoio. Até porque ele não teria meios legais para resolver nada na questão dos processos", diz Flávio da Silva, que perdeu no incêndio a filha Andrielle, aos 22 anos, e hoje preside a associação dos parentes das vítimas.

O julgamento dos quatro homens responsabilizados pelas mortes de dezenas de jovens não é a única ação que preocupa os parentes das vítimas. A maior parte dos processos por danos morais ainda estão em fase inicial e ninguém recebeu nenhuma indenização, cobrada do poder público por negligência na fiscalização da casa noturna.

"Só um caso subiu ao STJ, a maioria ainda espera na primeira instância", afirma o presidente da associação de pais.

É muito grande a angústia das pessoas. Muitos jovens mortos eram arrimos de família e a gente sabe que os parentes nunca vão receber nada.
Flávio da Silva, presidente da associação dos parentes das vítimas

Bombeiros Santa Maria - Germano Roratto/Agência RBS - Germano Roratto/Agência RBS
Brigadistas tentam conter chamas dentro da boate Kiss em 2013
Imagem: Germano Roratto/Agência RBS
A demora das decisões, diz ele, tem resultado em cada vez mais falta de confiança no poder Judiciário dentro da comunidade atingida pela tragédia. "As pessoas acabam se acomodando e abandonando as ações. A gente acaba entendendo, quem somos nós para julgar um familiar que está suportando essa dor ainda?"

O nosso relógio biológico ficou travado no dia 27 de janeiro de 2013 [data do incêndio]. O tempo passou, mas, para nós, como não houve nenhuma progressão principalmente nas questões dos processos, nós vamos ficar parados lá.
Flávio da Silva, presidente da associação dos parentes das vítimas

O representante dos parentes dos mortos desabafa: "Por quanto tempo a gente vai conseguir se manter fazendo cobranças a gente não sabe. É pressão psicológica, a gente ainda absorve a tragédia 24 horas por dia".

Teorias jurídicas embaralham julgamento

O caso da boate Kiss é um dos mais complexos da história do Judiciário brasileiro. Não bastassem as circunstâncias da tragédia e o número elevado de mortos, o que exigiu uma investigação ampla e centenas de audiências de testemunhas, o processo se tornou um embate de teorias jurídicas.

Para o Ministério Público, o empate na votação dos desembargadores não poderia beneficiar os réus na fase em que a Justiça decide se o crime deve ou não ser levado ao tribunal do júri, que é reservado aos homicídios intencionais ou em que os autores assumem o risco de morte --o chamado dolo eventual.

O procurador Luiz Fernando Calil de Freitas, que assina o recurso do MP-RS apresentado ao STJ, defende posição histórica da Corte segundo a qual, na fase atual do processo, deve ser aplicado o princípio "in dubio pro societate", que recomenda levar os julgamentos ao tribunal do júri em caso de dúvida sobre o tipo de homicídio. "Houve dúvida, pois os desembargadores se dividiram no sentido de entender se houve dolo eventual ou culpa. Dentro do contexto judiciário, tem muito mais razão ainda [o júri popular]".

Justiça 242 - Luca Erbes/Futura Press/Estadão Conteúdo - Luca Erbes/Futura Press/Estadão Conteúdo
27.jan.2016 - Protesto de familiares e amigos de vítimas da Kiss pede justiça
Imagem: Luca Erbes/Futura Press/Estadão Conteúdo

A defesa do empresário Elissandro Sphor contesta. "Empates favorecem o réu desde sempre, em qualquer situação", afirma o advogado Jader Marques. A questão pode acabar no STF (Supremo Tribunal Federal), onde recentemente o ministro Gilmar Mendes interpretou em uma decisão que somente o princípio "in dubio pro reu" teria fundamento constitucional, contrariando posições firmadas no STJ.

Familiares das vítimas assistem ao imbróglio jurídico com impaciência. Para muitos, a sensação foi de "virada de mesa" após a decisão do TJ gaúcho determinando que um juiz, e não um grupo de jurados, deve decidir se os acusados serão condenados. "Dá para perceber claramente que foi barrado o direito constitucional do tribunal do júri", reclama Flávio da Silva, representante das vítimas.

A expectativa das famílias para o julgamento do recurso na próxima terça é grande. "A gente está bem esperançoso e vou ser sincero: eu não penso em outro desfecho a não ser a reversão da decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul", diz ele.

MP fala em risco de prescrição

Se a decisão da Justiça gaúcha for mantida, os responsáveis pela boate e pelo incêndio ficarão sujeitos a penas menores. Isso porque, enquanto a punição máxima para homicídio intencional é de 20 anos de cadeia, podendo chegar a 30 anos se o crime tiver agravantes, a de homicídio culposo não ultrapassa três anos.

Além disso, pela legislação, crimes com penas menores prescrevem mais rápido. "A definição de que o evento aconteceu apenas com culpa joga para uma pena minúscula, que fatalmente estaria prescrita", diz o procurador Luiz Fernando Calil, levando em conta o prazo para novas apelações. "Isso significa impunidade."

"Nós temos aí quase 300 pessoas mortas e a Justiça dizendo que aquilo foi um descuido, foi negligência, imprudência? Isso afronta a consciência jurídica não apenas da sociedade em geral e das famílias que com toda razão clamam por providências, mas também a nós [do Ministério Público]", afirma.

O defensor de um dos sócios da Kiss rebate, acusando o MP de usar um argumento distorcido para criar uma atmosfera de pressão que influencie no julgamento. "Não é o Ministério Público que decide qual será o delito remanescente e qual pena vai ser aplicada, isso vai para a mão do juiz singular da causa em Santa Maria", diz o advogado Jader Marques. "Suposições a respeito da possibilidade de prescrição ficam por conta do Ministério Público, que está totalmente equivocado."

Marques afirma que, mesmo sem o tribunal do júri, os acusados não necessariamente ficarão impunes. "Como é um crime com uma grande quantidade de vítimas, a pena pode ser bastante alta, mesmo sendo considerado o homicídio culposo."

As famílias dos mortos na tragédia não têm a mesma convicção. "Eles até serão condenados, mas a gente já sabe que não vão cumprir prisão. Porque, até esgotar os recursos, já vai ter extrapolado o prazo e a pena estará prescrita", diz Flávio da Silva. "Isso aconteceu no processo de um dos bombeiros, um major. Ele foi condenado e não pegou pena porque o crime prescreveu."

A indefinição sobre os rumos do caso da boate Kiss contrasta com a rotina com que parte da sociedade se acostumou recentemente: as decisões muito mais rápidas produzidas pela força-tarefa da Operação Lava Jato, que condenou 155 pessoas nos últimos cinco anos. Algumas, como o ex-presidente Lula, em tempo recorde se comparado a casos semelhantes.

O coordenador da Procuradoria de Recursos do MP gaúcho ressalta que os processos são diferentes, mas é preciso tentar atender o clamor popular por Justiça sem prejuízo ao devido processo legal e às garantias processuais das partes. "Uma decisão em sentido contrário [que adie de novo o julgamento da boate Kiss] viria agora na contramão desses tempos que vivemos em que a Justiça parece, digamos assim, caminhar no sentido de ser mais célere", afirma Luiz Fernando Calil.

Defesa de dono da boate culpa MP por demora

A lentidão do processo da boate Kiss é consequência da estratégia adotada pelo Ministério Público, diz Jader Marques, defensor do empresário Elissandro Sphor. Para o advogado, a acusação errou ao alegar crime doloso e construir uma argumentação "duvidosa", que acabou despertando dúvidas nos desembargadores que analisaram o caso.

"Se tivessem adotado a imputação correta desde o início, nós já teríamos esse caso julgado e as pessoas inclusive cumprindo pena. Se a denúncia fosse por crime culposo, não teria essa discussão toda para ser julgado", afirma. "Se o critério é julgar com mais pressa, então não usa uma tipicidade mais duvidosa que enseje uma discussão enorme. Não fizeram a opção por um julgamento mais rápido", afirma Marques.

Tentando afastar a tese do crime com dolo eventual, o advogado cita como exemplo o fato de seu cliente e a esposa grávida estarem dentro da boate na noite do incêndio, o que segundo ele sensibilizou parte dos juízes do TJ-RS. "Como é que eu vou assumir o risco de matar as pessoas se essas pessoas incluem a mim e a minha mulher grávida?" O normal, para Marques, é considerar um dos principais responsáveis pela Kiss "imprudente".

Procurado novamente após as críticas da defesa do dono da boate, o MP-RS disse que não vai se manifestar sobre as afirmações.

Sobreviventes do incêndio na boate Kiss contam como se conheceram

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