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Paraisópolis: policiais descumpriram protocolo em ação que gerou 9 mortes

Viela da comunidade de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, onde pessoas morreram pisoteadas durante tumulto após ação da Polícia Militar (PM) - TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO CONTEÚDO
Viela da comunidade de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, onde pessoas morreram pisoteadas durante tumulto após ação da Polícia Militar (PM) Imagem: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO CONTEÚDO

Maria Carolina Trevisan

Colaboração para o UOL, em São Paulo

27/12/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Intervenção em baile não seguiu orientação passada para a PM
  • Protocolo obtido pelo UOL viu pelo menos 6 procedimentos descumpridos
  • Governo disse que não foi uma ocorrência de "controle de distúrbios civis"

A intervenção da Polícia Militar no baile funk da DZ7 em Paraisópolis (zona sul de São Paulo), em 1º de dezembro, não teria seguido os itens detalhados no protocolo utilizado pela corporação paulista em casos de "controle de distúrbios civis". O documento foi obtido, sob sigilo, pelo UOL e orienta as ações da Força Tática da PM. A tragédia deixou nove mortos em tumulto gerado pela intervenção da Polícia Militar.

O protocolo descreve detalhadamente como a tropa deve agir, as armas que deve portar, o efetivo que deve comportar e a forma como deve intervir e conter essas situações. De acordo com as evidências que foram apresentadas até o momento, no caso da intervenção em Paraisópolis, aparentemente, os itens detalhados no protocolo não foram seguidos.

Entre as normas que deveriam ser praticadas em "ações de contenção, persuasão e dissuasão coletiva", comandadas por um oficial, estão:

  • Solicitar breve relato de ocorrências anteriores e levantar informações relacionadas ao tipo, local, motivação, lideranças, quantidade de pessoas, grupos sociais envolvidos, uso de artefatos que gerem lesões, arma de fogo, nível de agressividade, resultados, dentre outras disponíveis;
  • Avaliar os pontos positivos ou negativos de ocorrências anteriores, relacionados à técnica e tática.
  • Verificar o número necessário de policiais militares treinados/habilitados em Controle de Distúrbios Civis (CDC) para atuação e a quantidade e tipo de equipamento, principalmente os de menor potencial ofensivo (granadas, munições de impacto controlado e espargidores) que serão necessários para a missão.
  • Prever o emprego especializado do efetivo de Força Tática, somente para ação específica, evitando o desgaste físico e psicológico.
  • Escolher, com base nessas informações, no guia de rua ou internet, qual o local ideal para o estacionamento das viaturas, permanência segura de tropa e desembarque antes da ação, e demais recursos logísticos para serem providenciados pelo batalhão.
  • Analisar sobre a necessidade de equipe de apoio, tais como bombeiro, Samu, policiamento com cães, dentre outros

As primeiras informações mostram que não havia um oficial no local para apoiar as tomadas de decisão, o que pode ter originado o efeito dominó de ações desastrosas que resultaram nas nove vidas perdidas.

Há também outras normas e técnicas que poderiam ter sido observadas durante a perseguição aos supostos criminosos que estariam efetuando disparos contra os policiais, motivo alegado para a invasão.

Um dos princípios da Polícia Militar é a preservação de vidas. Em um contexto de um veículo em fuga, fazendo disparos em um local de grande aglomeração de pessoas, a decisão que deveria ter sido tomada é deixar os suspeitos se evadirem. Seria um resultado superior a colocar mais gente em risco"
Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz

O texto do "Método Giraldi", protocolo desenvolvido em 1998 para as polícias de São Paulo, tido como responsável pela diminuição da letalidade policial no estado, afirma: "Não disparar em veículos em fuga, incluindo motos; podem existir pessoas inocentes no seu interior, inclusive no porta-malas. Pedir apoio. Fazer o acompanhamento".

Outro ponto que não foi planejado e que influenciou para que a tragédia acontecesse foi a falta de rotas de fuga para os participantes do baile da DZ7. Familiares e frequentadores relataram que a polícia agiu de maneira a encurralar as pessoas.

"Pelos relatos e pelo resultado, essa avaliação de rotas de fuga não foi feita. Nesse sentido é bastante factível a gente dizer que, no mínimo, a polícia concorreu para as mortes que aconteceram. Não dá para necessariamente fazer uma conexão de causa e efeito, mas é possível dizer que ao realizar uma dispersão sem ter analisado essa questão das rotas de fuga [a PM fez] algo que o próprio protocolo da polícia diz que está errado", afirma Langeani.

Foi uma situação em que até os próprios policiais se colocaram em risco. "A polícia deveria ter parado e recuado, para entender melhor a situação", aponta o advogado criminalista Pedro Martinez, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, indicado para acompanhar o inquérito.

"Poderiam, talvez, ter cercado as proximidades, mas jamais entrado no baile, jogando bombas de efeito moral, o que causou o tumulto. A melhor atuação teria sido mais comedida, que não causasse nenhum tipo de confronto com as pessoas que estavam ali na festa."

Questionada sobre não terem seguido os protocolos, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirma que a atuação em Paraisópolis não foi uma ocorrência de "controle de distúrbios civis", embora tenha resultado numa atuação de controle de civis.

"Foi uma ocorrência improvisada, precipitada e desastrosa", afirma o ouvidor das polícias de São Paulo, Benedito Mariano. Esse improviso contribuiu direta ou indiretamente com o resultado trágico de nove mortes.

Discurso e falta de transparência incentivam violência policial

A tragédia de Paraisópolis marca o governo de João Dória (PSDB) como o pior acontecimento em seu primeiro ano de gestão.

O governador primeiro defendeu a ação da polícia e afirmou que "a política de segurança pública do estado de São Paulo não vai mudar". Três dias depois, Dória admitiu a possibilidade de ajustes na conduta de agentes de segurança.

"Se existirem falhas, e elas forem apontadas, aqueles que falharam serão punidos", afirmou, em evento no Palácio dos Bandeirantes. "Independentemente disso, a Polícia Militar e a Polícia Civil já foram orientadas a rever protocolos e identificar procedimentos que possam melhorar e inibir, senão acabar, com qualquer perspectiva da utilização de violência e de uso desproporcional de força", declarou.

Há um ano, três pessoas morreram pisoteadas em um baile funk em Guarulhos (SP). Segundo testemunhas, o tumulto aconteceu após intervenção policial. Até hoje, não se sabe se houve responsabilização por essas vidas perdidas. "A baixa supervisão e a falta de transparência contribuem muito para esses desfechos negativos. É fundamental a punição. Mas tem outra parte que é: de que maneira fazer alterações institucionais na polícias para que eventos como esse não voltem a acontecer?", questiona Langeani.

Para tornar esse cenário mais sensível ainda, os discursos das autoridades mais importantes do país têm incentivado o uso da força como forma de conter a violência.

"O indulto natalino do presidente Bolsonaro [que perdoou policiais envolvidos em ocorrências que incluem excesso de uso da força] vem ao encontro das mensagens que ele tem passado desde quando assumiu o mandato, o que acaba incentivando uma violência maior dos agentes de segurança", afirma Martinez. "Esses discursos estimulam uma atuação de confronto na segurança pública, quando o necessário é trabalhar com prevenção e inteligência, evitando confrontos nas ruas."