Com Witzel, polícia mata mais que criminosos em 11 áreas do Rio de Janeiro
Resumo da notícia
- Em 11 áreas do estado do Rio, as forças policiais foram responsáveis por mais de 50% das mortes violentas em 2019
- Entre essas regiões, há áreas nobres da zona sul do Rio e da cidade de Niterói
- Para especialistas, os números mostram descontrole das polícias no uso da força letal
- Analistas dizem que Witzel e Jair Bolsonaro incentivam a violência policial em discursos
- Witzel alega que operações policiais seguem protocolos rígidos e que todas as mortes são apuradas
No ano em que registrou o maior número de mortes em confronto de sua história, o Rio de Janeiro teve 11 áreas em que a polícia matou mais do que os criminosos. Distribuídas entre a capital, a região metropolitana e o interior, entre essas regiões há endereços nobres do Rio de Janeiro e de Niterói, cidade vizinha, mostra cruzamento feito pelo UOL com base em dados do ISP-RJ (Instituto de Segurança Pública), órgão responsável por compilar e divulgar os índices criminais do estado.
Para chegar a essa conclusão, o UOL comparou as mortes por intervenção de agentes do Estado —quando supostamente criminosos são mortos em confronto— com a letalidade violenta, indicador que inclui também homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte. As estatísticas de criminalidade do Rio são divulgadas de maneira regionalizada. O levantamento considerou as áreas das CISP (Circunscrições Integradas de Segurança Pública), que correspondem às zonas de atuação das delegacias distritais. Para especialistas, os dados mostram que há descontrole no uso da força por parte das forças policiais do Rio.
Na área da 15ª DP (Gávea), as polícias Civil e Militar foram responsáveis por oito das 15 mortes violentas —53,34% do total. Fazem parte dessa área alguns dos bairros mais caros da zona sul do Rio, como a própria Gávea, São Conrado e Jardim Botânico. Também faz parte da circunscrição da 15ª DP a comunidade do Vidigal, área dominada pelo tráfico de drogas onde ocorrem constantes confrontos. Em maio, uma mesma operação deixou dois mortos na favela.
Na zona sul como um todo, a polícia é responsável por mais de 44% das mortes — 43 dos 97 casos registrados em 2019.
Outra área nobre do estado com esse tipo de ação policial é a da 77ª DP (Icaraí), em Niterói. Além do bairro homônimo, conhecido por ter o maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil, a delegacia também abarca os bairros de Santa Rosa e Vital Brazil, pontos valorizados da cidade, assim como Viradouro e Cubango. Na região, 88,5% das mortes tiveram policiais como autores —23 dos 26 casos de 2019.
Também em Niterói, o mesmo ocorre na circunscrição da 78ª DP (Jurujuba), que inclui ainda Charitas —um dos metros quadrados mais caros do Brasil— e São Francisco, dois bairros de classe média alta na cidade. Estão incluídos ainda Cachoeiras, Maceió, Largo da Batalha, Ititioca, Badu, Sapê, Matapaca, Vila Progresso, Muriqui, Maria Paula e Cantagalo. Lá, 18 das 33 mortes —ou 54,5% do total— foram cometidas por policiais.
Ainda figuram nessa lista a 7ª DP (Santa Teresa), na zona sul do Rio, assim como a 19ª (Tijuca), a 23ª DP (Méier), a a 24ª DP (Piedade), e a 25ª DP (Engenho Novo), na zona norte. Também têm a mesma situação a 50ª DP (Itaguaí), na Baixada Fluminense, 78ª DP (Fonseca), em Niterói, e 98ª DP (Engenheiro Paulo de Frontin), no interior.
Em todo o estado, as mortes por intervenção de agentes do Estado cresceram 18% no primeiro ano da gestão do governador Wilson Witzel (PSC) em comparação a 2018, chegando a 1.810 vítimas. É o maior número já registrado no Rio desde que esse tipo de estatística começou a ser medida, em 1998.
Witzel se elegeu defendendo uma política de confronto contra traficantes, chamados por ele de "narcoterroristas". Entre suas políticas está a defesa do "abate" de criminosos que portem armas de fogo —alvo de uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal) movida pelo PSB.
Ao longo do ano, o estado colecionou uma série de episódios e dados negativos no que diz respeito à violência policial. Julho de 2019 foi o mês mais violento da história da segurança pública do Rio, com 195 mortos pelas polícias. Também foi sob a gestão Witzel que o estado teve a operação policial mais letal da última década —em fevereiro, uma ação da PM nos morros do Fallet e Fogueteiro, em Santa Teresa, deixou um saldo de 13 mortos. Na ocasião, a Defensoria Pública do Rio e moradores denunciaram indícios de execução na ação.
Logo nos primeiros dias de seu governo, em janeiro, Witzel decidiu extinguir a Secretaria de Segurança, que era responsável por elaborar políticas públicas na área e articular as ações das polícias Civil e Militar. Em diversos momentos, o governador sustentou que daria "tranquilidade" para as ações das polícias.
"O meu papel como governador é permitir que a polícia tenha tranquilidade para trabalhar", afirmou pouco após o Bope (Batalhão de Operações Especiais) matar um sequestrador que mantinha dezenas de reféns em um ônibus na Ponte Rio-Niterói, em agosto.
Especialistas apontam descontrole da tropa
A falta de controle na atividade das polícias e os discursos que endossam ações violentas foram citados por especialistas ouvidos pelo UOL como razões para o aumento das mortes cometidas por policiais.
Pesquisador sênior para as Américas da ONG de direitos humanos Human Rights Watch, César Muñoz avalia que haver regiões em que as forças de segurança são responsáveis por mais da metade das mortes violentas é um exemplo extremo do descontrole sobre o uso da força no Rio.
"Isso mostra que há um problema grave com as forças policiais. A polícia deveria dar segurança, mas é uma fonte de insegurança. O Rio tem um problema de uso excessivo da força", critica.
Ele lembra que Witzel decidiu excluir das contas para a concessão de bônus por metas de redução da criminalidade as mortes em confronto, estratégia que tinha como objetivo reduzir as ações letais. Para o pesquisador, as falas de Witzel e do presidente Jair Bolsonaro (Sem partido) endossando ações violentas também pioram a situação.
"O discurso é muito importante. Se você tem uma sinalização por parte do governador e do presidente na prática incentivando a polícia a matar mais, isso produz um resultado concreto. O Rio já tinha um problema de letalidade policial que agora está pior", avalia.
Munõz ainda lembra que, embora as mortes em confronto tenham disparado, o número de policiais mortos em serviço caiu — foram 22 agentes mortos em 2019, menor número desde 2014. Segundo o pesquisador, isso denota que parte das vítimas de policiais não estava trocando tiros como se alega.
"Essa relação entre vitimização e letalidade policial é importante porque pode se comparar com outros países. Quando fizemos essa comparação, vimos que mesmo em forças policiais mais bem treinadas que a do Rio, como as dos Estados Unidos, há proporcionalmente mais mortes de policiais em relação às vítimas da polícia. Isso nos faz suspeitar de que parte das mortes no Rio não são em confrontos reais, onde as duas partes estão atirando", conclui.
Ex-secretário nacional de Segurança Pública, o consultor José Vicente Filho diz que picos de letalidade em algumas áreas indicam que falta controle sobre a ação dos agentes naquelas unidades.
"Quando nós observamos um excesso desse tipo em algumas áreas e a gente verifica que os homicídios e roubos não são mais frequentes do que em outros locais, podemos estar com um problema de comando na tropa nessas regiões", avalia.
Ele lembra que há formas de controle interno para reduzir esses índices, como identificar os policiais que mais matam. Em 2017, o jornal O Globo revelou que apenas 20 PMs estavam ligados a mais de 10% das mortes cometidas por policiais no Rio entre 2010 e 2015.
"Passei 40 anos na PM de São Paulo e já visitei as polícias de muitos países. Posso afirmar que não é natural que um policial ao longo de 30 anos de carreira mate sequer meia dúzia de pessoas. Um que mate 30 ou 40 pessoas precisa passar pela psiquiatria", diz.
Para ele, os discursos de Witzel representam "uma grave irresponsabilidade" e servem de incentivo para ação de maus policiais.
"Deve existir uma política de extrema austeridade nos pronunciamentos da autoridade maior, que é o governador, porque isso acaba servindo de incentivo para os maus policiais que estão na rua. Isso é uma grave irresponsabilidade por parte do governador. É um mero discurso político, mas acaba gerando algum incentivo para o policial atirar com mais facilidade", pontua.
O que dizem Witzel e a PM
Procurado, Witzel destacou a redução de diversos índices de criminalidade e afirmou, por meio de nota, que a política de segurança de seu governo é pautada "em inteligência, investigação e aparelhamento das polícias Civil e Militar".
Ainda segundo o governador, "as operações realizadas pelas polícias têm como principal objetivo localizar criminosos e apreender armas e drogas. As operações são pautadas por informações da área de inteligência e seguem protocolos rígidos de execução, sempre com a preocupação de preservar vidas".
Witzel diz ainda que "todas as mortes decorrentes de intervenção de agente público são apuradas. Caso comprovado algum excesso, são aplicadas punições previstas em lei".
Já o secretário de Polícia Militar, coronel Rogério Figueredo de Lacerda, afirmou que a corporação reduziu o número de policiais vitimados em confrontos em 38%, destacando que isso é "prioridade absoluta do comando da corporação". Ainda segundo ele, as constantes operações —criticadas por especialistas, moradores de comunidades e entidades de direitos humanos— enfraquecem o crime organizado.
"A nossa presença nessas comunidades invadidas por facções enfraquece o crime organizado e beneficia a sociedade. Essas operações frequentes dificultam a circulação dos marginais, o que impacta positivamente na redução do número de homicídios, roubos de veículos, roubos de carga e outros delitos", afirmou.
Neste mês, o UOL mostrou que, desde julho de 2016, apenas 3% dos confrontos com a participação de agentes de segurança na cidade do Rio ocorreram em áreas de milícia.
A Polícia Civil foi procurada, mas não respondeu às solicitações da reportagem.
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