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Brasil vai em sentido oposto a capitais do mundo que estatizaram saneamento

Alex Tajra

Do UOL, em São Paulo

25/06/2020 16h38

Resumo da notícia

  • Congresso aprovou Marco do Saneamento e pavimentou caminho para investimento privado no setor
  • Enquanto entusiastas dizem que a lei vai permitir investimentos, críticos alegam que as tarifas devem aumentar
  • Capitais como Berlim e Paris passaram por processos de privatização e voltaram atrás

A mudança no marco do saneamento básico no Brasil, aprovada nesta semana e que deve ser sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), pavimenta o caminho para que empresas privadas assumam a operação de água e esgoto nas cidades. Hoje, segundo o Atlas Esgotos, estudo elaborado pela ANA (Agência Nacional de Águas), ao menos 45% dos brasileiros (cerca de 100 milhões de pessoas) não têm tratamento adequado.

Enquanto os defensores da norma dizem que ela vai possibilitar a "universalização do saneamento", críticos afirmam que haverá aumento nas tarifas e privatização de um direito fundamental: o acesso à água.

Com o movimento de incentivo à privatização, o país caminha em sentido oposto ao que vem sendo feito em capitais pelo mundo. Cidades como Paris, Berlim e Buenos Aires tiveram experiências ruins com a privatização e acabaram voltando atrás. Na contramão, o Brasil agora tenta, via mercado, corrigir um problema histórico de saneamento básico.

Falta de esgoto e desperdício

Além da falta de esgoto adequado para quase metade do país, o volume de perdas de água pelos canos e estruturas mal-ajambradas é outro problema a ser sanado. O país desperdiça, em média, 38,45% da água distribuída, conforme dados do Instituto Trata Brasil. Isso significa que, para cada 100 litros de água captada, 38 são desperdiçados. Em 2018, o desperdício ficou em 6,5 bilhões de m³ de água —o equivalente a mais de sete mil piscinas olímpicas por dia.

Relator da nova lei, o senador Tasso Jereissati (PSDB) afirma que a norma trará R$ 700 bilhões em investimentos privados, mas não deixa claro qual o lastro dessa informação. Ele diz ainda que a norma possibilitará a "universalização" do saneamento básico no país.

O Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), elaborado em 2013, também previa essa meta, que deveria ser atingida em 2033, com cerca de R$ 300 bilhões de investimentos até aquele ano. Críticos argumentam que a privatização e o fim dos chamados contratos de programa devem tornar as tarifas mais caras, e que as cidades nos rincões do país seriam abandonadas, já que não há perspectiva de lucro.

Respaldado pela maioria dos congressistas, o marco foi proposto pelo governo de Jair Bolsonaro, via medida provisória, ainda em 2019. É uma pauta que também tem apoio de Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente. Houve acordo com parte dos parlamentares e o texto foi transformado em projeto de lei para que houvesse mais tempo para emplacá-lo.

'Remunicipalização'

O estudo "Our Public Water Future" do instituto de pesquisa TNI (The Transnational Institute) mostrou que, entre 2000 e 2015, 208 cidades de 37 países, que englobam 100 milhões de pessoas, tiveram seus sistemas "remunicipalizados", incluindo capitais, como Berlim, Buenos Aires e Paris, e grandes cidades, como Atlanta. Em 40% desses casos houve rompimento unilateral por parte do Estado, enquanto em 44,7% os contratos acabaram e as prefeituras optaram pela estatização.

O caso francês é notório. O país, no anseio da universalização do tratamento de esgoto, passou por um processo de privatização que envolveu grande parte de seu território. O setor tinha 32% de participação privada em 1932 e passou para 80% em 2000, segundo relatório da consultoria Go Associados. No caso de Paris, a reestatização ocorreu em 2010, tendo como principal argumento a redução das tarifas, diminuídas em 8% logo após o fim da gestão privada.

Houve também uma mudança em relação aos investimentos. A empresa pública que assumiu após o período de gestão privada reinvestia todo o seu capital na rede de esgoto e água, sem distribuição de dividendos.

Como o Brasil, a Argentina passou por processo de venda dos ativos de infraestrutura pública nos anos 1990. No caso do saneamento, muito precário no país à época, houve concessão e um consórcio se sagrou vencedor com uma proposta de redução de 26,9% nas tarifas. A empresa privada, no entanto, se endividou na casa das centenas de milhões de dólares e não cumpriu com as metas estabelecidas.

O governo argentino e os serviços passaram a ser prestados pela empresa pública AySA (Agua y Saneamientos Argentinos). Até 2018, investidores brigavam com a concessionária que assumiu nos anos 1990 por conta de uma dívida na casa de US$ 1,2 bilhão.

Em Berilm, parte da holding controlada pelo estado para gerir o saneamento da cidade foi vendida para um consórcio de empresas francesas e alemãs em 1999. Houve críticas por conta das concessões feitas pelo estado às empresas, como a garantia de lucros aos investidores e privilégios na hora de tomar as decisões, mesmo com os empresários detendo a minoria das ações da empresa.

"No entanto, em 2004, os preços da água haviam aumentado em aproximadamente 35%", escrevem os pesquisadores do TNI. Entre 1999 e 2011 os investidores lucraram cerca de 1,5 bilhão de euros, o equivalente a 7% anuais. Em 2012, o Federal Cartel Office alemão (agência que regula a concorrência no país), ordenou que os preços da água fossem diminuídos em 18% por serem considerados abusivos.

Em 2012 e 2013, após uma intensa pressão pública principalmente por conta do valor das tarifas, a cidade de Berlin readquiriu as ações que haviam sido vendidas. Para readquirir a empresa, o município teve de fazer um empréstimo que agora é repassado nas contas de luz dos cidadãos. Os investimentos em infraestrutura, no entanto, dizem os pesquisadores, "aumentaram, e o preço de tratamento de água foi reduzido".

Como é no Brasil?

A implementação de saneamento básico no país é regida pela Lei 11.445, de 2007. O artigo 2º estabelece que o saneamento é o conjunto de serviços operacionais de:

  • Abastecimento de água potável;
  • Esgotamento sanitário, envolvendo coleta, transporte, tratamento e disposição final no meio ambiente;
  • Limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos;
  • Drenagem e manejo das águas pluviais urbanas.

A titularidade do serviço de saneamento é dos municípios, e estes têm até o momento três possibilidades para gerir estas atividades:

  • Administração pública direta, quando o município se encarrega de prestar os serviços de saneamento;
  • Contratos de programa, instrumento utilizado pelo município para contratar empresas estatais (Sabesp, por exemplo) para realizar o serviço de saneamento;
  • Licitação para contratação de empresas privadas.

Hoje, o país tem cerca de 94% de seus municípios atendidos por empresas estatais, boa parte pelos contratos de programa. Com o novo marco, essa modalidade ficaria suprimida, e restariam apenas duas opções às cidades: administração direta ou licitação.