Massacre de Realengo: vítimas contam traumas após 10 anos de ataque a tiros
Há 10 anos, Alan Mendes, um adolescente de 13 anos, precisou fugir da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, Zona Oeste do Rio, em busca de ajuda. Logo no início da manhã, um atirador invadiu a sala de aula sem pedir licença, matou 12 alunos, deixou 13 feridos e marcas para a vida inteira. Após uma década, sobreviventes e famílias que perderam seus filhos se reuniram em homenagens pelo bairro e uma missa em memória das vítimas, no Santuário do Cristo Redentor, às 17h.
Alan Mendes, hoje com 23 anos, teve sua prova de português interrompida naquela quinta-feira de 2011. Ele passou na casa de Samira, uma de suas melhores amigas, e foram juntos para a escola, como de costume. Eles chegaram por volta das 8h, sentaram perto um do outro e estavam se preparando para uma prova de português, até que o ex-aluno Wellington Menezes de Oliveira entrou na sala de aula.
"A professora perguntou o que ele estava fazendo ali e ele respondeu que daria uma palestra. No mesmo instante sacou a arma e atirou na cabeça da minha amiga. Samira morreu na hora, na minha frente. Fiquei congelado, sem reação e ele me deu um tiro na altura do ombro, próximo à clavícula. Quando ele foi atirar na Jéssica, uma colega que estava de cabeça baixa, eu ataquei uma cadeira nele. Novamente minhas pernas congelaram e ele atirou em mim mais uma vez. Fui baleado no rosto, poucos centímetros abaixo do olho esquerdo e a bala saiu pela orelha direita. Foi então que decidi correr e fui atingido na mão e na barriga."
"Até hoje tenho pesadelos"
Aos 13 anos e estudante do 8º ano, Alan foi baleado quatro vezes e ainda assim conseguiu correr para pedir ajuda. Ele saiu da escola e correu cerca de 300 metros, em direção à sua casa, até que avistou uma viatura, o que era raridade na região. Pediu ajuda aos policiais, contou o que estava acontecendo, e prontamente os agentes pediram para ele entrar na viatura que o levariam até o hospital mais próximo.
"Na hora eu falei que estava bem, não precisava ir ao hospital. Foi quando me questionaram como isso era possível, se eu estava cheio de tiros. Nesse momento me dei conta que estava todo baleado, ensanguentado e entrei em desespero. Achei que a roupa suja era porque tinha escorregado na poça de sangue de Samira."
Alan relata que saiu do carro andando e foi atendido no Hospital Municipal Albert Schweitzer e se recuperou do episódio. Após 10 anos do massacre, ele sente dores no peito até hoje, no local em que a bala ficou alojada, próximo ao coração. "Recebi auxílio médico e psicológico do governo apenas por dois anos. Depois nunca mais, ninguém me procurou ou quis saber como eu estava. Vi meus amigos morrerem na minha frente, conhecia todas as vítimas. Até hoje tenho pesadelos desse dia."
O jovem de 23 sonhava em seguir a carreira militar, mas como não pode fazer muito esforço físico, os planos mudaram. Hoje ele planeja fazer faculdade de administração.
"Consigo voltar para aquele dia e ouvir os gritos"
Adriana Silveira lembra do atentado como se fosse ontem. Mãe de um casal, ela perdeu a caçula Luiza Paula da Silveira, 14, que tinha ido para a escola sozinha naquele dia.
Pouco tempo depois, Adriana saiu de casa e começou a perceber uma movimentação estranha na rua, foi quando ela descobriu por um vizinho que estava acontecendo alguma coisa na escola em que Luiza estudava. Prontamente, correu até lá, mas não achou a filha. Perguntava dela para todo mundo, foi até uma igreja em frente que estava acolhendo as pessoas, mas ninguém sabia da menina. Foi quando ela decidiu ir para casa da mãe, para saber se ela estava lá.
"Eu não tinha noção do que estava acontecendo, da gravidade da situação. Eu jamais imaginaria que teriam crianças atingidas fatalmente. Foi quando eu ouvi um grito desesperado de dor de uma vizinha, mãe da amiga da minha filha, a Larissa Martins, que havia morrido. Só em falar eu consigo voltar para aquele dia e ouvir os gritos. Ali entrei em pânico, fiquei desesperada sem saber onde estava a minha filha. Horas depois meu marido recebeu a informação de que ela estaria no hospital, tinha sido atingida nas pernas. Foi quando descobrimos que ela já não estava mais viva."
Dias depois, todos os familiares decidiram se conhecer. Fizeram uma reunião para conversar, compartilhar a dor e dividir o peso da perda. Durante esses 10 anos, Adriana criou a Associação Anjos de Realengo, nome que as vítimas eram chamadas. Ela passou a criar rodas de conversas, debates nas escolas, trabalhos de prevenção contra bullying e decidiu lutar diariamente para levar cultura, arte e atendimento psicológico dentro das escolas.
"Foram 10 anos de dor, lutas, altos e baixos. Eu não podia aceitar que a minha filha morreu dentro da escola, um lugar que ela deveria estar segura. A partir daí eu decidi lutar para fazer com que essa tragédia não se repetisse em lugar nenhum."
"Vai morrer porque é muito bonitinha"
Estudante de Direito do 7° período, Thayane Tavares, 23, foi uma das sobreviventes. Mesmo após todo esse tempo, ela lembra desse 7 de abril de 2011 todos os dias, quanto senta na sua cadeira de rodas.
"Estava na aula de português quando eu e minha turma começamos a ouvir uns barulhos, mas o som estava longe. Imaginamos que era uma bombinha, que tem um barulho bem semelhante a tiro, então pensávamos que tinham crianças do lado de fora da escola jogando em cima do telhado da quadra. Mas foi ficando mais perto e começamos a desconfiar. Os barulhos eram mais intensos, mais próximos e em um curto espaço de tempo. Fomos até a porta para ver o que estava acontecendo e conseguimos visualizar que na sala da frente, tinha um cara com duas armas dando tiro em todo mundo. Nesse momento começou o desespero e a gritaria."
Thayane conta que no meio daquela confusão, uns correram e outros ficaram. Ela ficou, pois achava que a irmã mais nova estava na escola e poderia vir atrás dela.
"Fiquei porque eu pensava 'morre eu, mas não morre minha irmã'. Só deu tempo de me esconder debaixo das mesas e, logo em seguida, ele entrou na sala e começou a atirar na gente. Eu fui atingida por 4 tiros. O primeiro seria na cabeça, mas defendi com o braço. Ele viu que eu estava viva após o primeiro disparo, então comecei a me fingir de morta. Ele deu uma volta na sala para atirar em outras crianças, depois voltou em mim e chutou meu pé. Quando olhei, ele disse: 'Você não morreu, não? Vai morrer porque é muito bonitinha'. Colocou a arma na minha testa e disparou três vezes à queima roupa. Os tiros desceram e foram dois para a barriga, um na cintura e eu perdi os movimentos das pernas na hora".
Paraplégica, Thayane precisou ficar três meses internada e passou mais 2 anos com a saúde instável, indo e voltando para o hospital.
"Entre uma cirurgia e outra, passei a maior parte do tempo drogada com remédios, sendo cuidada por profissionais da saúde. Era como se tivesse outra pessoa dentro de mim, eu não me reconhecia e odiava aquela vida. Foi muito difícil no começo, mas deu tudo certo e hoje está tudo bem. Não aceitei nenhum tipo de apoio psicológico na época, quis lidar com isso sozinha desde sempre, mas minha família sempre esteve comigo e o principal de tudo, Deus, sem Ele nada seria possível. Deus me sustentou todo esse tempo e até hoje", conta a sobrevivente.
Muita coisa mudou nesses 10 anos. Thayane se forma em 2022, é independente, mora sozinha e conta que escolheu lutar pela própria vida: "Estou vivendo uma fase muito gostosa e quero curtir cada momento. Eu mudei muito, não me considero a mesma. Nasceu uma nova Thayane, mais forte, mais destemida, mais determinada, ainda mais sonhadora que acredita que não existe o impossível".
Combate ao bullyng através da arte
Luciana Cruz, 45, se emociona até hoje quando fala do massacre. A educadora estava em casa se arrumando para o trabalho quando escutou um barulho na rua, um falatório e uma vizinha chamando a irmã que morava na casa ao lado. Ela queria saber onde estavam as crianças, pois estava tendo tiros na escola Tasso da Silveira.
"Saí correndo de casa e, quando fui descendo a rua em direção ao colégio, avistei várias crianças correndo com a roupa suja de sangue e vi uma amiga gritando desesperada atrás do filho. Graças a Deus os meus sobrinhos já tinham saído da escola, mas horas depois descobri que amigos deles e dos meus filhos, crianças que eu tinha visto nascer, rostos conhecidos, estavam mortas."
A educadora conta que um de seus filhos sofria bullying desde os nove anos e teve dificuldades de se adaptar na escola no ensino fundamental. Na tentativa de resolver, ele chegou a trocar de colégio três vezes neste período. Depois desse massacre, ela decidiu tomar uma atitude: "Era muita dor, cheguei a dizer que meu bairro tinha acabado. Meses depois, me reuni com um grupo de amigos e começamos a fazer o curso de palhaçaria, sem nenhuma pretensão. Até que um dia percebemos que este era o chamado que tínhamos. Começamos a trabalhar na prevenção e combate ao bullying através da arte. Criamos a Trupe Quintal Itinerante e levamos este trabalho por todo lugar."
O atirador
Wellington Menezes de Oliveira, 23, era ex-aluno e uma figura conhecida do bairro. No dia 7 de abril de 2011, por volta das 8h15, ele entrou armado no colégio e atirou contra vários adolescentes. Matou 12 alunos — 10 meninas e 2 meninos — e feriu outros 13. As vítimas tinham entre 12 e 14 anos. O atirador se matou depois que foi atingido na troca de tiros com os policiais.
Homenagem às vítimas
Na tarde de hoje, foi realizada uma missa para 20 pessoas no Santuário do Cristo Redentor, com transmissão ao vivo pelo Youtube. A celebração foi presidida pelo Padre Omar e contou com a participação dos cantores Elba Ramalho e Mumuzinho.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.