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Na pandemia, éramos anjos; viramos demônios, diz motoboy após roubos em SP

Leonardo Martins

Do UOL, em São Paulo

30/04/2022 04h00

Carros acelerando no farol vermelho, rostos assustados, abordagens policiais. Há 20 anos como motoboy pelas ruas de São Paulo, Marcos Cardoso Alves, 47, diz que nunca sentiu tanta insegurança em relação ao seu trabalho como nos últimos meses.

A onda de assaltos com motociclistas usando mochilas de aplicativos de entrega tem assustado moradores da capital paulista. "No começo da pandemia, éramos anjos, heróis, levando comida, remédio, elogiados por todos. Agora, você vê em questão de meses: você não é mais anjo, virou demônio", diz o entregador ao UOL.

Nesta semana, pelo menos três casos de assaltos desse tipo foram divulgados. Um jovem de 20 anos reagiu a um roubo de um motoqueiro com mochila de aplicativo e foi assassinado na frente da namorada na zona sul de São Paulo. Em outros dois casos, noticiados pelo UOL, motoqueiros assaltaram e perseguiram pessoas na zona oeste.

O motoboy Marcos Cardoso Alves, 47 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O motoboy Marcos Cardoso Alves, 47
Imagem: Arquivo pessoal

O impacto no trabalho dos motoboys foi imediato, conta Marcos Cardoso Alves. Além da desconfiança da população, ele diz ter sido abordado quatro vezes por policiais militares somente nesta semana.

"A população está com medo e assustada, e eu não tiro a razão. Eu fico até tarde da noite e comecei a perceber que as pessoas andam com medo. Quando vê a moto, já se assusta. Já tinha um preconceito com nossa profissão, mas, agora, ficou pior", relata.

Você fica até um pouco envergonhado. Estou pensando em sair da profissão porque cada vez está pior."
Marcos Cardoso Alves, motoboy

Também há 20 anos como motoboy na capital paulista, Roderic de Morais, 45, diz que a desconfiança não é de hoje, mas as imagens dos roubos pioraram a situação.

"Com as câmeras, está aparecendo mais [esse tipo de crime]. Às vezes alguém pede informação, você vai parar do lado de algum carro, se alguém atrás acha que você está assaltando, é capaz de o cara passar em cima de você ou te dar um tiro de graça", avalia. "Esses bandidos estão complicando ainda mais nossa situação, fora as pessoas que estão sendo vítimas."

O motoboy Roderic de Morais, 45  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O motoboy Roderic de Morais, 45
Imagem: Arquivo pessoal

As pessoas nos olham de outra maneira. Quando você vai estacionar a moto, o pessoal que está andando na rua fica receoso. É uma segurança do próprio ser humano que está vendo as notícias. É instinto. Mas a maioria [dos motoboys] são pessoas de bem, pai de família."
Roderic de Morais, motoboy

Clodoaldo Fernandes Neto, 50, tem 26 anos de profissão e pede resolução dos aplicativos e do governo. "Estão usando o nome e a marca das empresas e a categoria está sendo prejudicada. Todo dia você vê motoboys assaltando a população. A culpa é minha? Não, da empresa e do poder público", afirma.

O motoboy Clodoaldo Fernandes Neto, 50  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O motoboy Clodoaldo Fernandes Neto, 50
Imagem: Arquivo pessoal

"Estou há 26 anos nas ruas e não tinha essa discriminação que tem hoje. Antes, usavam garupa, mas hoje usam mochila do aplicativo", conclui Neto.

"Está meio descontrolado o negócio. As empresas não querem cumprir regra e injetam todo tipo de gente [no mercado], ocasionando essas situações. Difícil de se controlar", afirmou à reportagem o presidente do Sindimoto-SP (Sindicato dos Motofretistas de São Paulo), Gilberto Almeida.

De olho no celular

Normalmente, o foco dos motoqueiros que assaltam nas ruas de São Paulo é o celular, segundo o delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Osvaldo Nico Gonçalves. Com o equipamento destravado, os criminosos buscam acesso às contas bancárias.

"Eles querem roubar celular aberto para fazer transferência via Pix. Estamos orientando a não ficar dentro do carro telefonando, com o celular aberto. Os crimes digitais são mais difíceis. Demora mais para acessar a informação. Estamos conseguindo, mas é difícil, e vamos conseguir", disse à reportagem o delegado-geral.

David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pontua que o dinheiro de boa parte da população, hoje, é digital e está dentro do celular. "Pix, aplicativos de banco. Isso se torna um ativo maior que o aparelho celular em si [para o roubo]."

"A questão é que, assim como as novas tecnologias e aplicativos vão se atualizando, o crime é dinâmico e se aproveita dessas possibilidades. Está associado a esse boom dos deliveries que, durante a pandemia, teve um impulso muito grande", analisa.

Os motoboys que assaltam usando mochilas não têm necessariamente vínculo com algum aplicativo. É possível encontrar mochilas com logomarcas dos aplicativos de entrega com preços a partir de R$ 80 na internet —o que torna a solução do problema ainda mais difícil.

Para Marques, o poder público —responsável pela segurança pública— e os aplicativos deveriam intensificar as ações de combate a esse crime. "Há um diálogo importante a ser feito com aplicativos de delivery para criar segurança maior nos aplicativos de entrega. As polícias poderiam fazer operação específica para esse tipo de crime, identificar quadrilhas com essa prática e investigar a questão das mochilas [à venda na internet]."

O crescimento do número de roubos com assaltantes disfarçados de entregadores de aplicativo na cidade de São Paulo levou a Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) a procurar a SSP no mês de março para tratar do assunto, conforme relatou o UOL Carros. A entidade enviou ofício à secretaria informando que sugeriria às empresas de aplicativos a adoção de dispositivos de segurança, "como grafar o número do entregador em letras bem grandes na parte de trás e nos lados da caixa que porta as embalagens, facilitando a identificação dos mesmos por quem está na rua ou em carros".

Imagens de câmera de segurança mostram momento em que rapaz é baleado após reagir a assalto na zona sul de São Paulo  - Reprodução/TV Globo - Reprodução/TV Globo
Imagens de câmera de segurança mostram momento em que rapaz é baleado após reagir a assalto na zona sul de São Paulo
Imagem: Reprodução/TV Globo

O que dizem a SSP e o iFood

Ao UOL, a Secretaria Estadual da Segurança Pública diz que intensificou ações de combate aos assaltos com motoqueiros. A pasta afirma que o saldo de duas operações recentes foi a prisão de 185 suspeitos, 43 celulares roubados e recuperados e apreensão de 37 motos irregulares.

Em nota, o iFood reconhece a importância de uma "união de esforços" com o governo, mas destaca que tem uma equipe dedicada à investigação e prevenção de fraudes, golpes e "atividades ilícitas".

O aplicativo ainda relata o processo de cadastro, que inclui "tecnologia OCR, que permite verificar se a pessoa da foto é a mesma pessoa do documento apresentado". "Também possuímos uma ferramenta de reconhecimento facial que é ativada periodicamente como uma medida de segurança para coibir o aluguel e empréstimo da conta", diz.

"É importante ressaltar que, a despeito de ser necessário uma bag [mochila] para fazer entregas com o aplicativo, não há exigência de uso da bag com o logo. Portanto, o fato de uma pessoa estar utilizando uma bag com a marca do iFood não significa que esteja fazendo uma entrega pela plataforma ou ainda que possua cadastro nesta."