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Vídeos flagram maus-tratos em creche investigada em SC: 'Pesadelo', diz mãe

Giorgio Guedin

Colaboração para o UOL, em Florianópolis

07/07/2022 04h00

A creche particular Bem Me Quer Desenvolvimento e Movimento, em Florianópolis, é investigada por maus-tratos após denúncias de ex-funcionários e de pais de alunos, com idades entre 0 e 5 anos. Relatos, fotos e vídeos expõem agressões físicas e psicológicas, entre outras acusações, aos quais são atribuídas à diretora e proprietária, Twuisa Alexandre Marcelino.

A Polícia Civil e o MP (Ministério Público) catarinense apuram o caso. A defesa da creche afirma que não reconhece os fatos e as imagens atribuídas à creche, que cobrava mensalidade de R$ 1.400 por aluno. Estima-se que entre 10 a 20 crianças passaram por lá nos últimos meses.

Vídeos obtidos pelo UOL, gravados por uma ex-funcionária da creche, mostram a diretora abafando o choro de uma bebê com um cobertor.

"Para, para com essa porcaria. Que chata!", reclamou a mulher na gravação. Em outro momento, ela disse: "Chega! Deu. Não solta essa chupeta, que fica perdendo essa porcaria". Os vídeos foram gravados no começo de junho.

A bebê que aparece no vídeo está hoje com 11 meses e era a mais nova da creche. Em contato com o UOL, a mãe da criança, que pediu para não ser identificada, ainda se recupera do choque após assistir às imagens.

"Estamos tentando processar as informações. Parece mentira, por tudo que nos foi vendido. A ideologia maravilhosa da creche: preservava a natureza, cuidava dos animais, cardápio bem montado. Está doloroso, sofrido para nós", contou.

A mãe matriculou a bebê na creche em fevereiro deste ano, em período integral, por ser próximo ao trabalho dela. Até o caso vir à tona, não havia nenhuma suspeita.

Ela é muito bebezinha ainda, não dá para saber direito se algo havia de errado. Mas agora, com tudo isso, é que nós ligamos os pontos. Quando colocamos uma roupa mais pesada, por conta do inverno, e a blusa passava pela boca, pelo rosto, ela ficava agoniada. É um desespero para ela. Devido aos fatos, aos vídeos, a gente crê que a menina ficava tapada por horas. Mãe de bebê vítima de maus-tratos.

A mãe conta também que a bebê agora tenta se recuperar de traumas. "Está abatida. Percebemos que está um pouco afastada de mim. Ela só dorme com meu marido. Não sei se a figura 'mulher' tem relação".

Outra mãe ouvida pela reportagem afirmou que já desconfiava de algo, quando o seu filho de 2 anos tinha predileção em querer ficar com uma professora e não com outra, que seria a diretora.

Todos os pais ouvidos pelo UOL ainda afirmam que, após conhecer o estabelecimento e realizar a matrícula, eram impedidos de entrar na escola. "Era só o momento de largar nossos filhos e ir embora. Não podíamos ficar muito tempo ali", relatou uma mãe.

Quero que a Justiça seja feita. Queremos que tudo se resolva logo, pois nossa vida virou um pesadelo. Desabafo de mãe de aluno.

Ex-funcionária começou a registrar os abusos

A polêmica começou quando uma ex-funcionária, contratada no início do ano, observou que um comportamento diferente na creche assim que foi admitida. Comidas, água e mamadeira eram controlados.

"Fui criando uma intimidade com uma professora que trabalhava comigo. E ela tinha comentado que desde quando entrou na creche era assim, tudo controlado", relatou ao UOL a mulher, que também pediu para não ser identificada.

Creche economizava carne em alimentação das crianças, diz ex-funcionária - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Creche economizava carne em alimentação das crianças, diz ex-funcionária
Imagem: Arquivo Pessoal

"Ela [a diretora] até inventou o dia sem carne, uma segunda-feira, como forma de economizar. Só podia tomar um gole de suco", relata.

Os indícios de maus-tratos aumentaram quando a diretora supostamente borrifava spray contendo álcool e água na cara dos bebês - quando tossiam ou espirravam - além de deixá-los sozinhos na hora do sono.

A funcionária queria sair da creche, mas decidiu continuar para colher provas do caso. "Na primeira semana eu já queria sair, mas fui orientada pela minha família a ficar lá pelas crianças. Que iríamos ficar lá até conseguir as provas".

Na semana passada, após juntar vídeos e fotos, além de ter presenciado um suposto puxão de orelha em uma criança, ela pediu desligamento da creche e comunicou as agressões para duas mães, que levaram a denúncia adiante na polícia.

Passaram muitas professoras e lá e todas tinham medo, se sentiram acuadas pela dona da creche. A sensação [com a denúncia] é de alívio, pois talvez se eu não tivesse lá, ela teria matado aquele bebezinho sufocado. Ex-funcionária.

Remédio jogado fora, gritos, agressões e mais

Outra ex-funcionária já havia denunciado os problemas da creche ao Conselho Tutelar. Por falta de fotos e vídeos que seriam usados como provas, segundo ela, o caso não foi adiante.

A percepção no início do trabalho, ainda de acordo com ela, era a mesma que a dos pais quando conheciam a creche. "Realizei a entrevista lá e tudo me pareceu muito certo, mas o que acontece não chega nem perto disso", relatou.

Porém, após uma semana de trabalho, a situação já era diferente. Ela acusa a diretora de ter mantido um menino autista sentado o dia inteiro atrás da mesa dela, pois ele batia em outros colegas.

Ela raramente alimentava o menino, pois alegava que ele não comia muita coisa, os remédios dele eram jogados fora, pois dizia que ele cuspia nela quando tomava. Quando ele gritava, ela mandava calar a boca, gritava e às vezes batia. Relato de ex-funcionária.

Uma outra criança que usava aparelho auditivo também sofria violência. "Assim que ele chegava na escola ela nos mandava tirar o aparelho dele para que ele não o perdesse, deixando ele o dia todo sem", relata.

Ela, que afirma se sentir culpada por não ter feito algo na época, conta que os funcionários também eram maltratados com gritos e humilhações.

Defesa nega irregularidades

Em nota enviada ao UOL, a defesa da creche afirma que "não reconhece a validade dos fatos e das imagens divulgadas que estão lhe sendo atribuídas" e que não há registros de "eventuais irregularidades". O comunicado diz que a escola possui todas as autorizações para funcionar.

"[A creche] não reconhece a validade dos fatos e das imagens divulgadas que estão lhe sendo atribuídas, informando que não há registros de eventuais irregularidades, permanecendo à disposição das autoridades", finalizou.

Creche estava regular, diz prefeitura

Os pais receberam um comunicado, no último fim de semana, informando que as atividades da creche estariam suspensas por tempo indeterminado a partir da última segunda-feira (4).

O Procon de Santa Catarina interditou o lugar na tarde de hoje, com "o objetivo de inibir condutas desonestas e abusivas e a falta de comprometimento na oferta de serviços impróprios". Além disso, o muro externo amanheceu ontem com pichação com a palavra "abusadora".

Creche amanheceu na quarta-feira (6) com palavra 'abusadora' no muro - Divulgação/Procon-SC - Divulgação/Procon-SC
Creche amanheceu na quarta-feira (6) com palavra 'abusadora' no muro
Imagem: Divulgação/Procon-SC

Em nota enviada ao UOL, a Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis informou que a creche estava autorizada a funcionar. No texto, a pasta afirma que o Conselho Municipal de Educação já havia recebido uma denúncia em fevereiro deste ano. Naquele período nada de irregular foi constatado.

No último dia 1º de julho, a pasta recebeu nova denúncia. Na oportunidade, ficou definida uma nova vistoria para segunda-feira, mas isso não ocorreu porque as atividades da creche já haviam sido suspensas um dia antes. Os funcionários chegaram a averiguar a denúncia, mas não conseguiram entrar.

O Conselho Tutelar do Continente, responsável pela região onde ficava a creche, afirma que em dezembro de 2021 recebeu uma denúncia, mas que "faltava embasamento".

Mesmo assim, o Conselho Tutelar diz que vistoriou e não constatou nenhuma irregularidade, mas uma advertência formal foi encaminhada à prefeitura. Em maio deste ano, em uma nova inspeção, nada de irregular se verificou.

Investigações em andamento

A Polícia Civil de Santa Catarina começou a ouvir testemunhas. Ao menos, 12 mães já prestaram depoimento na Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso de Florianópolis.

A diretora de Polícia na Grande Florianópolis, delegada Michele Alves, afirma que os investigadores esperam ouvir a diretora ainda esta semana. A investigação tem o prazo legal para ser concluída em 30 dias, mas a Polícia Civil espera finalizar o inquérito antes.

Em nota enviada ao UOL, o Ministério Público de Santa Catarina afirma que "a 10ª Promotoria de Justiça da Comarca da Capital instaurou uma notícia de fato na qual requisitou inquérito policial para apurar as denúncias de maus tratos".

Além disso, a 9ª Promotoria de Justiça da Capital instaurou procedimento administrativo para apurar se houve omissão do Conselho Tutelar no caso.