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'Não fazem ideia do que passamos', diz socorrista que caiu em atendimento

Socorrista reencontra jovem que ajudou em incidente em Novo Gama (GO) - Arquivo pessoal
Socorrista reencontra jovem que ajudou em incidente em Novo Gama (GO) Imagem: Arquivo pessoal

Do UOL, em São Paulo

23/05/2023 04h00Atualizada em 23/05/2023 18h10

O socorrista do Samu Gustavo Rios — que escorregou e caiu sobre um motociclista — já enfrentou ameaças de linchamento, resgatou vítimas de agressão e salvou um idoso espancado pelo enteado.

Rotina de ameaças e violência

As situações que causam mais temor no dia dia dos socorristas são as de violência, que envolvem armas brancas e armas de fogo, diz Gustavo. O técnico de enfermagem de 29 anos, que atua em Novo Gama (GO), relata momentos de apuro e receio nos atendimentos.

A primeira vez que atendeu pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência em Goiás, em janeiro de 2020, Gustavo lembra que a vítima era jovem com marcas de disparo na cabeça e no tórax. "Quando chegamos, ele já havia morrido. Não tinha o que fazer, mas a população não entendia e começou um burburinho."

Incitado por algumas pessoas, o grupo começou a gritar, e o medo foi de linchamento. "Era como se não quiséssemos prestar o atendimento. 'Vão deixar morrer?', ameaçavam."

Em setembro, Gustavo atendeu um homem que havia sido espancado em frente a um comércio, no bairro Pedregal. Havia o risco de o suspeito da agressão voltar, e a equipe se deslocou. "Como a polícia não havia chegado, descemos alguns quarteirões para garantir a segurança." O atendimento foi realizado dentro da ambulância.

Outra lembrança igualmente traumática para Gustavo ocorreu em 31 de dezembro, no plantão de Ano-Novo. Ele e a equipe foram chamados para atender um idoso que havia sido espancado pelo enteado.

Familiares alertaram que o enteado teria saído para buscar uma arma e voltaria. Gustavo e a equipe colocaram o idoso na ambulância para deixarem rapidamente a casa. Somente em um posto de combustível próximo, ele conseguiu finalizar o atendimento. O idoso morreu dois dias depois.

No auge da pandemia de covid, o socorrista descreve o impacto diário com a perda de vidas por causa da doença. "Tive um contato com a morte como nunca tive ao longo da minha vida. Foram tantas histórias pesadas que tive que desenvolver técnicas para proteger a saúde mental."

Tenho que pensar que tem gente me esperando em casa. O destino das pessoas que se machucam e são agredidas está nas mãos de quem está nas ruas."
Gustavo Rios, socorrista e técnico de enfermagem

Socorrista Gustavo Rios dá aulas e faz faculdade de enfermagem em Goiás - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Socorrista Gustavo Rios dá aulas e faz faculdade de enfermagem em Goiás
Imagem: Arquivo pessoal

Professor, enfermeiro e socorrista

Gustavo nasceu em Brasília, no Distrito Federal. Desde criança, ele diz que é fascinado por ajudar e socorrer pessoas. A carreira de socorrista começou aos 19 anos. Há quatro, ele trabalha no Samu de Novo Gama, a 181 quilômetros de distância da capital de Goiás, Goiânia. Antes, ele trabalhava em empresas privadas que prestavam serviço de atendimento à saúde.

Hoje, ele se divide entre as atividades como socorrista e técnico em enfermagem. Ele trabalha dois dias por semana no posto de atendimento do Samu e três dias no Hospital Universitário de Brasília. Ele também cursa faculdade de enfermagem e dá aulas.

A correria diária de Gustavo começa logo cedo. O socorrista acorda às 6h, inicia o plantão no Samu às 7h e, na base, aguarda pelos chamados e pedidos de socorro por 24 horas. Nos dias menos agitados, ele aproveita o tempo para fazer cursos, treinamentos e estudar.

Nos dias em que atua no Hospital Universitário de Brasília, ele chega à unidade às 19h e atende os pacientes até as 7h. Quando tem as manhãs livre, faz o estágio da faculdade.

Gustavo ressalta que os primeiros riscos se apresentam já nos deslocamentos. "Por mais que os motoristas das ambulâncias sejam treinados, a rapidez exigida é o primeiro risco", diz. Ele lembra também que outras ameaças como contaminação, contágio e transmissão de doenças acabam invisibilizados.

Sem filhos, Gustavo mora com a mulher, que também é enfermeira. A repercussão do vídeo que registrou o momento em que ele escorregou assustou a família do socorrista. "Muitas pessoas fizeram piadas, mas logo começamos a falar sobre o lado que não é engraçado, sobre a dura rotina nas ruas."

Após algumas experiências em atendimentos em meio a situações de perigo, Gustavo diz que aprendeu a conviver com o medo. "O controle e o medo nos deixam mais maduros para trabalhar."

O incidente que viralizou

O socorrista escorregou e caiu sobre um motociclista durante um atendimento em Novo Gama. As imagens mostrando o incidente ganhou repercussão nas redes sociais, e ele gravou um vídeo para explicar o que aconteceu.

Segundo Gustavo, o atendimento ocorreu no dia 12 de maio, mas o vídeo repercutiu no dia 19. A ocorrência envolvia um carro e uma moto. "O fluído de freio se misturou com a água do radiador em uma situação muito atípica."

No momento de transferir o motociclista para a prancha, Gustavo se desequilibrou, escorregou e caiu. "Mas continuamos o atendimento tranquilamente. O paciente ficou bem, ele teve leve escoriações na perna."

Nas redes sociais, Gustavo comentou o acidente: "Só quem está na rua e quem vive o dia a dia está exposto a essa situação. É muito fácil falar, fazer piadas — inclusive até aviso que estamos fazendo um top 10 com as melhores piadinhas".

No fim de semana, o socorrista se encontrou com o motociclista e ambos lembraram o incidente com humor. "A preocupação dele era com o meu emprego, mas está tudo bem."

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que informava a primeira versão do texto, Novo Gama fica a 181 quilômetros de Goiânia, e não do Distrito Federal. O texto foi corrigido.